quinta-feira, 23 de abril de 2020

Na quarentena com Bertrand Russell: como aproveitar bem o seu tempo?


Responder a essa pergunta – como aproveitar bem o seu tempo? – não é uma tarefa simples. A própria pergunta é complexa e até capciosa, afinal, nem todos nós estamos dispondo de mais tempo livre durante este período de isolamento social ou quarentena. Há aqueles que continuam trabalhando normalmente; há os que acumularam mais tarefas; há os que até estão com tempo livre, porém  com uma perda significativa de renda. Logo, a resposta para a pergunta deve passar, invariavelmente, pela questão do trabalho e do papel que ele ocupa em nossas vidas, incluindo o tempo de vida que ele ocupa ou preenche. 

Assim que o período de isolamento social – melhor medida preventiva comprovada até o momento para reduzir o número de infectados pelo coronavírus – começou, logo vieram diversas publicações e reportagens dando dicas de como preencher o tempo e até do que fazer para evitar adoecimentos mentais como a depressão, desengatilhados às vezes pelo tédio imposto pelo tempo ocioso. Isso é curioso, pois sugere que existe uma certa desorientação por parte de muitas pessoas quando se veem desvinculadas de suas rotinas profissionais, sem as rédeas dos horários de entrada, almoço, saída, locomoção para a ida e a volta etc. 

Isso me faz lembrar um caso que aconteceu no meu trabalho. Estávamos eu e um colega de profissão conversando sobre o volume de trabalho em nosso setor, mas não de uma forma negativa. Pelo contrário, ele destacou que em uma outra instituição, que funciona perto de nosso local de trabalho, o setor equivalente ao nosso (mesma função/mesmo tipo de serviço) estava meio ocioso, com pouquíssima coisa para fazer por conta da falta de aparelhagem para a execução das tarefas. “Eu iria morrer”, disse o meu colega sobre a possibilidade de estar na pele daqueles funcionários supostamente sem muito que fazer. Ficaria entediado. Fiquei surpreso ao ouvir que ele “iria morrer”. “Eu iria viver!”, pensei na mesma hora. Pois me vieram à cabeça meus cursos a distância e outros projetos que eu poderia tocar em frente ou mesmo desenvolver com o tempo excedente por conta das limitações materiais do setor de trabalho. Não seria tão ruim. Pelo contrário, seria bom. Coisa para fazer a gente sempre arruma, sejam atividades edificantes (penso nos cursos), sejam atividades de entretenimento (penso nos joguinhos). Mas a questão intrigante é: por que tantas pessoas se veem tão dependentes de suas rotinas e práticas profissionais a ponto de não conseguirem se imaginar preenchendo seu tempo com outras coisas e, pior, achando que ficariam mal com o tempo livre? Vale destacar que o relato pessoal que trago não ilustra um tempo livre que resultaria em perda de dinheiro (caso do desemprego, por exemplo), apenas um tempo livre sem ônus financeiro, uma diminuição da carga de trabalho. Então porque ver isso como algo negativo?          

Cinquenta anos sem Bertrand Russell

Seria então coincidência que o matemático e filósofo galês Bertrand Russell, autor de O elogio ao ócio (1932) tenha completado 50 anos de sua morte em fevereiro, justamente no período de isolamento social em alguns países por conta da pandemia? Sim, seria! Entretanto, podemos nos valer de algumas de suas ideias para pensar na resposta a nossa pergunta e para refletir sobre a pergunta. Russell nasceu no século 19, em 1872, e se tornou um dos maiores pensadores do século 20, sendo um dos criadores da escola de filosofia analítica, movimento filosófico que propôs que a filosofia deve se valer de técnicas lógicas para obter clareza conceitual, buscando aproximação com a ciência moderna. Os filósofos analíticos, como Russel, valorizavam a clareza e a precisão argumentativa, tendo na linguagem sua principal ferramenta.  

Bertrand Russell ficou conhecido por suas posições políticas, que por sua vez guardavam relação com sua obra. Pacifista, opôs-se à participação britânica na Primeira Guerra Mundial e, décadas depois, encabeçaria junto com o físico Albert Einstein um manifesto contra as armas nucleares. Engajado em questões feministas, defendia a igualdade de direitos (políticos e sexuais) entre homens e mulheres e dizia que a intervenção cristã na educação era degradante para as mulheres, reforçando a dominação sobre elas [1]. Mas são suas reflexões sobre trabalho e tempo que mais nos interessam.

Tempo e trabalho

O ex-presidente uruguaio e “quase-filósofo” (por que não?) José “Pepe” Mujica diz que "quando compramos algo, não compramos com dinheiro, compramos com o tempo de vida que tivemos que gastar para ter aquele dinheiro" [2]. Há uma relação intrínseca entre trabalho, tempo e dinheiro na sociedade contemporânea capitalista. A grande maioria de nós precisa trabalhar (e, normalmente, trabalhar muito!!) para ter dinheiro. E, para trabalharmos, ocupamos nosso tempo. Às vezes tanto de nosso tempo é dedicado ao trabalho que sobra pouco para outras atividades. Se você é um dos privilegiados que teve uma redução da carga de trabalho durante esse período de isolamento social, talvez possa refletir sobre o quanto teve mais tempo disponível para fazer coisas do seu agrado. Coisas que tem a ver com quem você é, que fazem você se sentir você mesmo. Seja pintar um quadro ou assistir a filmes do seu gênero favorito. Mais do que isso, talvez você tenha convertido o tempo livre em cuidado e proximidade com a família e tenha percebido o quanto isso é bom: poder dar mais atenção aos filhos, aos pais, às tias, quem sabe.

Mesmo que a carga de trabalho não tenha sido reduzida, ainda assim muitos profissionais que migraram para suas casas neste período de pandemia sentiram-se livres do fardo do transporte diário de ida e volta ao trabalho. Dependendo da cidade onde se more e do bairro, só em economizar esse tempo já dá para se fazer muita coisa. Pois é sobre o trabalho e, consequentemente, sobre o tempo, que Bertrand Russell lança sua análise em O elogio ao ócio. O filósofo define o trabalho em dois tipos: o primeiro é mais “físico”, visa "alterar a matéria"; o segundo, mais “intelectual”, visa instruir ou supervisionar aqueles que estão trabalhando na alteração da matéria. Explico: imagine uma fábrica de cadeiras e que você é um operário dessa fábrica. Você e seus colegas são encarregados de talhar a madeira, polir, envernizar e pregar as peças para construir as cadeiras. A matéria, neste caso, é a madeira que é extraída das árvores, e vocês são os trabalhadores do primeiro tipo, aqueles que movem a matéria. Os trabalhadores do segundo tipo seriam, no caso, alguns supervisores da fábrica, que controlam o trabalho dos operários, além de alguns designers, responsáveis por projetar os modelos de cadeiras. 

A esses dois tipos de trabalhadores estão associadas, de modo geral, as classes sociais. Indivíduos de classe baixa (ou classe operária) normalmente são trabalhadores do primeiro tipo; indivíduos de classe média são, em grande medida, trabalhadores do segundo tipo. O trabalho do segundo tipo tende a ser menos extenuante e melhor remunerado que o do primeiro. E mais, esse segundo tipo de trabalho pode ser estendido quase que indefinidamente: há os supervisores, os supervisores dos supervisores, os supervisores dos supervisores dos supervisores e por aí vai... Claro que esses cargos não são assim tão literais, mas sim batizados com nomes pomposos. Quem sabe “supervisor-executivo”, e acima o “supervisor-geral”, e acima o “diretor-geral de supervisão”...

Curioso é observar que, na medida em que o trabalho vai se distanciando da matéria, ou seja, do chão da fábrica, a remuneração tende a melhorar. Entretanto, são aqueles trabalhadores do chão da fábrica (ou da ponta do atendimento) ainda os mais essenciais para a atividade-fim (a produção de cadeiras, em nosso exemplo). Isso vale não só para produtos, mas também para serviços. O fiscal da linha de ônibus que você pega para ir ao trabalho é importante, mas não tanto quanto o motorista que vai conduzir o veículo de sua casa até seu escritório. Tempos como esses, de paralisação de muitos empreendimentos, desnudam o óbvio: a essencialidade de serviços ESSENCIAIS. O problema é que a remuneração, na maioria das vezes, não acompanha essa essencialidade. O motorista que te leva e traz, o padeiro que faz o seu pão, o coveiro responsável pelo seu enterro (espero que você não precise disso, mas lamentavelmente o coronavírus tem aumentado a demanda por sepultamentos) são importantíssimos, porém muito mal pagos. 

Às duas classes de trabalhadores, Russell acrescenta uma terceira: a dos proprietários, que estão ainda mais distantes da matéria (do chão de fábrica ou da ponta do atendimento), portanto mais ociosos, dependendo do trabalho dos outros para manter sua ociosidade. E é justamente essa classe beneficiária do sistema quem mais costuma exaltar as virtudes da “labuta honesta”, justamente porque se beneficia dessa propaganda. Você já deve ter ouvido frases como “o trabalho enobrece o homem”. Para Russell, isso é balela. “Um dano imenso é causado pela crença de que o trabalho é virtuoso” (apud, BUCKINGHAM et tal, 2011, p. 2380) dizia ele. 

Porém, a crítica de Russell não era voltada contra todo tipo de trabalho, mas sim contra a ideia de que o trabalho é virtuoso em si mesmo. Ao questioná-la, ele queria nos fazer refletir sobre o quanto nossa relação com o trabalho – e com o tempo – pode estar baseada em uma ética incoerente e hipócrita: ao mesmo tempo em que vemos no trabalho algo que dá dignidade ao homem, criamos uma hierarquia de valores que inferioriza, por exemplo, o trabalho braçal e alguns serviços essenciais. Russell queria que pensássemos com profundidade sobre o porquê de trabalharmos e que enxergássemos o trabalho não por meio de dogmas morais influenciados pelas elites, mas com um olhar questionador, nos perguntando em que medida nosso trabalho – e o trabalho, de forma geral – contribuem para termos uma vida plena e satisfatória.

Raízes marxista e weberiana

Leitores mais atentos já devem ter notado a semelhança entre o pensamento de Russell e o de Karl Marx, principalmente quanto à luta de classes e o modo como os proprietários dos meios de produção são menos importantes para o sistema produtivo do que os mesmos fazem supor. Mas para melhor compreender a abordagem de Russell sobre tempo e trabalho vale a pena a leitura de outro importante sociólogo, Max Weber. Em Ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber mostra como muito da ideia que fazemos hoje em dia sobre o trabalho e o tempo tem raízes na ascensão da burguesia, lá pelo século 16, principalmente de uma burguesia particularmente ligada aos protestantes calvinistas. Para eles, o sucesso no trabalho e a aquisição do dinheiro eram sinais de “escolha divina”. Muito religiosos, viam os luxos e prazeres da época como pecaminosos. Como não podiam ou não queriam gastar o dinheiro que ganhavam com essas coisas, passaram a reinvestir esse dinheiro para fazer mais dinheiro. Era preciso trabalhar cada vez mais para ganhar mais e reinvestir. E assim sucessivamente. Antes desse período, por exemplo, na Idade Média, a nobreza não cultuava o trabalho, mas sim o ócio [3]. 

A ascensão da burguesia protestante calvinista gerou uma mercantilização do tempo. A ideia de que tempo é dinheiro. Se hoje você se sente culpado ou culpada porque não está trabalhando tanto quanto de costume ou mesmo sente tédio com isso, sem saber como preencher o próprio tempo, é porque já tem arraigada dentro de si essa ética do trabalho apontada por Weber e criticada por Russell. E pouco importa se você é um protestante calvinista, um católico, budista ou ateu. As religiões fazem certas contribuições ao pensamento da sociedade que a gente absorve mesmo sem professá-las. 



Conclusões

Mas como aproveitar bem o seu tempo? Sabendo de todas essas coisas, você deve evitar cair na armadilha da produtividade a qualquer custo com a execução de tarefas ligadas a um trabalho que não te faz feliz. Muita gente se acostuma com o trabalho que tem e até diz que gosta dele, mas está só mentindo para si próprio. Russell nos faz refletir de forma mais profunda e crítica sobre até que ponto nosso trabalho nos é satisfatório. Se o seu trabalho não te satisfaz, não se sinta tão culpado por estar ocioso (caso você realmente tenha o ócio como opção neste momento!). Não é preciso fazer mil cursos para investir em uma carreira que não te motiva. 

A ideia de aproveitar bem o tempo é muito relativa. Para alguns, bom aproveitamento de tempo está ligado à produtividade; para outros, está ligado à diversão e entretenimento. Qual o seu caso? Se você é adepto da produtividade, lembre-se que essa produtividade não precisa estar necessariamente ligada ao seu emprego ou trabalho formal. O importante é você fazer algo de que goste e que faça você se sentir produtivo. Pode ser a hora de fazer um curso que não tenha relação direta com a sua formação, estudar um idioma alternativo (mandarim, quem sabe) ou se reencontrar com a sua veia artística. Aliás, os artistas amadores sabem bem o que é o sentimento de ter que vender grande parte de seu tempo trabalhando em um emprego qualquer para pagar as contas e, em uma vida paralela, com o pouco tempo que lhes sobra, desenvolver sua arte, seja ela desenho, pintura, fotografia, música, literatura. Aliás, gosto muito do exemplo de Franz Kafka, um dos maiores nomes da história da literatura, que escrevia para se aliviar do peso de um trabalho enfadonho como burocrata de seguros. Certamente ele teria nos deixado uma obra mais ampla se pudesse trabalhar menos. 

Mas se você é daqueles que acha que o aproveitamento do tempo é sinônimo de diversão ou mesmo de ócio, permita-se distrair a cabeça ou descansar. Não se culpe achando que está perdendo tempo. Para Russell, “o tempo que você gosta de perder não é tempo perdido” [4]. Acho essa uma frase simples e que faz todo sentido. Por fim, Russell conclui que se todos começarem a refletir sobre o trabalho de forma crítica e livre das amarras ideológicas da burguesia capitalista, a conclusão da maioria será a de que estamos trabalhando demais. A proposta do filósofo era uma jornada de trabalho ideal de quatro horas. Ele fez algumas conjecturas sobre como seriam nossas vidas e a sociedade de modo geral sem o peso extenuante do trabalho. Para Russell, ao nos dedicarmos mais ao lazer, haveria impactos positivos na educação e na arte. Na educação, porque teríamos uma educação não restrita apenas à formação para o mercado de trabalho, mas voltada para o desenvolvimento de nossos talentos e potencialidades. Nas artes, porque nos sobraria mais tempo para nos dedicarmos a produzi-la, apreciá-la, incentivá-la. 

Será possível um mundo tal como idealizado por Bertrand Russell, em que o trabalho não tome tanto o nosso tempo? Um mundo sem o protagonismo tamanho do mercado e do dinheiro? Não sei responder, mas creio que sim. Pense no quanto de habilidades, diversões e novos saberes você poderia praticar com algumas horas de sobra em um trabalho de jornada reduzido. O quanto você poderia se desenvolver enquanto ser humano? Você poderia ser, por mais tempo, quem você é, usando seu tempo para você e do seu jeito. Confesso que não sou tão exigente quanto Russel. Eu adoraria ver institucionalizada uma carga horária de cinco horas de trabalho por dia (estaria de bom tamanho!). Aliás, também tenho uma proposta! E se em vez de reduzirmos a carga horária diária, reduzíssemos os dias de trabalho na semana (com cada um de nós trabalhando quatro ou cinco dias úteis, em vez de cinco ou seis)? Penso nessa possibilidade pois o período de isolamento social me fez refletir não só sobre o uso do tempo e peso do trabalho, mas também sobre muitas outras coisas, como mobilidade urbana, por exemplo.  Nas raras vezes em que precisei sair de casa, confesso que achei bom ver algumas ruas vazias, menos filas e o trânsito sem engarrafamento (se você mora em uma grande cidade, certamente vai entender o que eu digo). Daí pensei no quanto poderíamos adaptar as ideias de Russel, sobre carga de trabalho, para reduzir o problema ambiental e de mobilidade que é o excesso de veículos. Com as pessoas trabalhando menos dias, haveria menos carros nas ruas e menos dióxido de carbono emitido no ar. Por que não? Precisamos aprender algumas lições com este período de pandemia e, em vez de termos pressa de voltar à normalidade, devemos usar o aprendizado para estabelecer uma nova normalidade, um pouco melhor. 

Referências
BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas; HILL, Clive; KING, Peter J; MARENBON, John; WEEKS, Marcus. O livro da filosofia, São Paulo: Editora Globo, 2011.

RUSSEL, Bertrand. O Elogio ao ócio. Disponível em: http://tele.sj.ifsc.edu.br/~msobral/pji/ElogioOcio.pdf  Acesso em 23 abr 2020.

1- Mais sobre Bertrand Russel:

2- Frase de José Mujica:

3- Saiba mais sobre A ética protestante e o espírito do capitalismo, obra de Max Weber:

4- “O tempo que você gosta de perder não é tempo perdido”

terça-feira, 14 de abril de 2020

Flexibilização do uso de armas de fogo e as falácias dos armamentistas



Frequentemente aqueles que defendem maior flexibilização do uso de armas de fogo fazem comparações entre elas e outros utensílios para defender sua posição. É o caso do ministro Onix Lorenzoni, que comparou armas de fogo a liquidificadores [*] [1]. Há pelo menos dois problemas lógicos nessa comparação.

Primeiro, isso desconsidera o próprio conceito de tecnologia, que é o uso da ciência e engenharia no fabrico de coisas que resolvam problemas específicos. Por exemplo, você pode cortar um queijo com uma faca? Claro que sim. Mas um cortador de queijo corta as fatias com mais precisão e é mais prático, porque foi projetado justamente para isso. Da mesma forma, você até pode beber água em um prato, mas no copo fica muito melhor e mais fácil. O prato serve melhor para coisas sólidas, não líquidas.

Outro problema é quando dizem coisas do tipo "armas não matam pessoas. Pessoas matam pessoas". Com isso querem dizer que quem quer matar alguém não precisa de armas de fogo, podendo usar qualquer outro tipo de utensílio. Um prato, por exemplo. Só que esse "argumento" é uma falácia, ou seja, uma estratégia retórica usada somente para ludibriar o interlocutor. Se os defensores das armas realmente acreditassem nisso, não precisariam defender a flexibilização das armas, bastariam usar um prato (ou qualquer tipo de utensílio citado na comparação). Quem não tem um prato? Mas eles continuam a defender a flexibilização das armas de fogo justamente porque sabem que elas têm uma vantagem competitiva na finalidade para a qual foram projetadas (matar) em relação a outros artefatos. E é justamente essa vantagem competitiva que leva a necessidade de maior regulamentação.

As pessoas já se matavam antes das armas de fogo e do desenvolvimento da pólvora. Mas elas sempre preferiram aquilo que a tecnologia oferecia de melhor para esta finalidade em suas épocas. Pense no personagem principal de "Coração Valente" correndo na direção do exército inglês gritando "freedom" com um prato na mão. Ridículo, não? Ele preferia espadas e lanças. Esperto.

Nossos precursores Homo habilis receberam esse nome por desenvolverem habilidades no uso e fabrico de utensílios para fins específicos, como a caça e o combate, (o filme "2001 - uma odisseia no espaço" ajuda a ilustrar). Era o primórdio da tecnologia. Estamos em 2019 e alguns Homo sapiens, quando fazem comparações entre armas e liquidificadores, parecem desconsiderar aquilo que os Homo habilis já sabiam há cerca de 1 milhão de anos.

* - Texto publicado originalmente no dia 16 de janeiro de 2019, no Facebook do autor

Referências:

1- Declaração do ministro Onix Lorenzoni comparando armas de fogo a liquidificadores:

2- Estudos relacionam frouxidão na regulamentação de armas de fogo a aumento da violência:


segunda-feira, 13 de abril de 2020

Contágio, o filme: “profecias” sobre cloroquina e o (mau) uso da internet



O que assistir durante a quarentena? Para algumas pessoas, o período de isolamento social tem sido entediante, com aquela sensação de não saber bem o que fazer com o tempo disponível (claro que isso não vale para todo mundo, pois há muita gente que está trabalhando ainda mais). No comando do controle remoto, há aquelas pessoas que querem se distrair, esquecer um pouco o problema do coronavírus, mas, por incrível que pareça, muitas não conseguem se desligar da situação e buscam nas telas um pouco mais do contexto em que estão vivendo. Prova disso é o filme Epidemia (1995) estar figurando na lista dos 10 mais assistidos da Netflix.

Se você é desses que não se desligam, buscam mais do mesmo e têm estômago suficiente, recomendo duas obras: a série documental Pandemia, disponível na Netflix e lançada assertivamente no início deste ano, e o filme Contágio, de 2011, disponível na HBO GO. É dele que falaremos. Trata-se de uma obra de ficção, mas que impressiona de tão realista. Dirigido por Steven Soderbergh (o mesmo de Onze Homens e um Segredo), o filme, estrelado por Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Jude Law e Laurence Fishburne, foi redescoberto pelo público e vem sendo chamado de “profético”, tamanha a semelhança com alguns aspectos da crise provocada pela pandemia de coronavírus. Assim como Epidemia, Contágio está bombando: o filme se tornou um dos mais comentados no Letterboxd, rede social focada em cinema, e está na segunda posição na lista de mais procurados da Warner Bros. Em dezembro, ele estava na modesta 270º posição dessa mesma lista.

O filme merece ser chamado de profético? Na verdade, cinema e literatura são pródigos em antever situações. No campo da ciência isso é bem perceptível. Em 1902, nos primórdios da arte cinematográfica, o diretor Georges Méliès, um dos pais dos efeitos especiais, lançou Viagem à Lua, baseado no romance Da Terra à Lua, de Júlio Verne, ambos lançados muito antes de Neil Armstrong pôr os pés em solo lunar, em 1969. A escritora Mary Shelley, com seu Frankestein, antecipou no século 19 discussões sobre clonagem e bioética que cresceriam ao longo do século 20. Ao falar sobre o mito do Frankestein, o pesquisador Jon Turney nos lembra que “não é convincente a separação que alguns fazem entre o reino da imaginação e o domínio científico” (2005, p. 105). Isso porque a imaginação não serve somente para a arte, é preciso algumas doses dela na ciência. E por isso com frequência a arte irá “prever” feitos e contextos de caráter científicos.

Os acertos de Contágio se devem muito mais a um roteiro antenado com os nossos tempos e uma boa consultoria científica[1], incluindo o apoio de epidemiologistas, do que a algum tipo de misticismo profético. Epidemias não são novidade e, dois anos antes do filme ser produzido, o mundo havia passado por um surto de H1N1, a chamada gripe suína. Muitas situações típicas de uma epidemia são bem caracterizadas em Contágio: a expressão moribunda dos infectados, com sudorese, tosse e palidez; as formas de contaminação, retratadas por meio de closes em objetos, em carnes expostas nas feiras e em situações de proximidade entre as pessoas; o isolamento social, com ruas, igrejas e diversos estabelecimentos vazios; dentre outros aspectos. Em tempos de coronavírus, tudo fica ainda mais realista.

O vírus das fake news

Mas, dentre os diversos acertos de Contágio, o que mais impressiona é a abordagem que o filme faz sobre o fluxo de informação em tempos de epidemia e seus impactos na sociedade. Os perigos das notícias falsas, que se proliferam tanto ou mais do que o próprio vírus, possuem um amplo espaço no filme. Em 2011, a internet e suas boatarias já não eram mais nenhuma novidade, mas é interessante ver o assunto retratado de uma forma tão atual antes de termos como “pós-verdade” e “fake news” tornarem-se tão populares. Logo no início do filme, de dentro de uma redação de jornal, a fala do jornalista freelancer interpretado por Jude Law é icônica de nossos tempos: “a mídia impressa está morrendo!”. Daí em diante acompanhamos a empreitada do personagem como blogueiro.  

Parte do problema em Contágio não está propriamente no vírus, mas na convulsão social causada, em grande medida, por esse pseudojornalista. É ele o principal responsável por disseminar que uma substância chamada “forsítia” seria a cura para o vírus. Imediatamente ocorre uma corrida às farmácias, incluindo invasões e saques, ao ponto da substância desaparecer das prateleiras. Tudo seguindo a receita das teorias conspiratórias: a forsítia é a cura, mas a indústria farmacêutica, o governo e a comunidade médica, todos em conluio, trabalham para omitir informações e garantir seus interesses escusos. Impossível não relacionar a forsítia do filme com a cloroquina da vida real, no contexto do covid-19.


O pseudojornalista se passa por uma espécie de porta-voz de uma verdade escondida, tal e qual o modo como os conspiracionistas em geral gostam de se sentir. Aqui fica clara a descrença nas instituições, outra característica marcante de nossos tempos. O estado e suas instituições públicas, a mídia tradicional (caso dos grandes jornais impressos, que o jornalista blogueiro disse estarem morrendo) e até a própria ciência passam a ser sistematicamente desacreditados e desqualificados. Movimentos antivacina e o terraplanismo estão aí para mostrar isso. Em um momento memorável do filme, o médico Ellis Cheever (interpretado por Lawrence Fishburne), é confrontado pelo blogueiro em um programa de TV. O blogueiro insiste na forsítia e, com bom domínio do debate e eloquência no discurso conspiracionista, joga o médico contra a parede.  Doutor Cheever, que trabalha nas pesquisas por uma vacina, responde que tipos diferentes de drogas estão sendo testados, mas, na falta de resultados conclusivos, o ideal é a manutenção do isolamento social. Parece até que o personagem está falando diretamente com o presidente Jair Bolsonaro, um entusiasta da cloroquina e crítico da quarentena.

Entretanto, é Jude Law quem parece se sair melhor no debate, mesmo sem ter razão. Aqui, contágio reforça mais um traço dos nossos tempos com relação às tecnologias midiáticas e à midiatização: a forma se sobrepondo enormemente ao conteúdo. No contexto atual, técnicas de relações públicas, propaganda, marketing e boas ferramentas algorítmicas podem convencer a opinião pública de qualquer coisa, ainda que essa coisa seja frontalmente contrária às evidências científicas. Isso pode fazer com que certos assuntos que são consensuais ou praticamente consensuais na comunidade científica pareçam controversos para a opinião pública. Um exemplo é o aquecimento global antropogênico (ou seja, causado pela ação humana). Para quem quiser saber mais sobre o assunto, recomendamos o documentário Mercadores da Dúvida[2], baseado no livro homônimo, que mostra as táticas persuasivas dos negacionistas climáticos. Uma das principais armas dos propagandistas das controvérsias é saber explorar uma regra jornalística que é a de ouvir sempre os dois lados da história. A regra é justa e necessária, diga-se de passagem, mas o “outroladismo” pode gerar algumas dissonâncias e distorções, dando para ideias extremamente minoritárias o mesmo espaço na mídia que posições consensuais com maior corpo de evidências e com fundamentos mais sólidos[3].

Contágio exagera em alguns traços e dramas da epidemia. Afinal de contas, é cinema e o cinema joga com a emoção. A rapidez e letalidade do vírus fictício são bem maiores que as do coronavírus (ainda bem!) e a convulsão social é bem mais intensa (ao menos por enquanto), mas, em alguns aspectos, é a realidade quem supera a ficção. Embora o filme mostre de forma brilhante os efeitos nocivos das teorias conspiratórias aliadas à internet, não há em Contágio grandes autoridades políticas reproduzindo tais teorias e propondo como cura substâncias sem efeito comprovado. Já na vida real (cada vez mais surreal), presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro defendem o uso da cloroquina em suas declarações públicas. A substância ainda não tem efeito cientificamente comprovado na cura do covid-19, por isso é preciso cautela[4]. Isso mostra que, no mundo real, todo esse modus operandi conspiracionista de internet retratado no filme vem aos poucos se fundindo ao próprio estado e suas instituições. Trump, nos EUA, e o Brexit, na Grã-Bretanha, são frequentemente apontados como exemplos de êxitos eleitorais imbricados com o fenômeno da pós-verdade (ou pós-fato), termo que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais. As novas mídias digitais, principalmente as redes sociais, têm protagonismo neste cenário perigoso[5].

A eleição de Bolsonaro não foge dessas características. O êxito de sua campanha à presidência foi conquistado por conta das redes sociais (principalmente do Whatsapp), a despeito do pouquíssimo tempo de TV que tinha na propaganda eleitoral oficial[6]. Como se não bastasse a defesa prematura da cloroquina (não necessariamente um equívoco, mas, no mínimo, uma imprudência), o presidente do Brasil virou uma espécie de garoto propaganda antiquarentena. Uma coisa é se antecipar à comunidade científica defendendo uma eficácia ainda não comprovada, a outra é contrariar deliberadamente essa comunidade, que recomenda o isolamento social como a melhor forma de prevenção no momento, assim como o doutor Cheever faz em Contágio. O pseudojornalista interpretado por Jude Law também estava certo em um ponto: a mídia impressa está mesmo morrendo. O problema é se o que estamos colocando no lugar é melhor ou pior e quais as transformações sociais decorrentes dessa substituição. O historiador da ciência David Wootton, autor de Uma breve história dos fatos na revista History Today, em que discute a visão peculiar de Trump sobre fatos e verdades, vê com muita ressalva essas transformações:

A internet cria uma enchente de pontos de vista diferentes e você não consegue diferenciar o certo do errado, pois todos parecem igualmente convincentes na tela. E acho que, com isso, a fofoca está sendo transformada em opinião, e fica bem mais difícil distinguir argumentos bem fundados de preconceito. Acho que a internet está nos levando de volta a um mundo medieval no qual as histórias se espalham rapidamente, sejam verdadeiras ou falsas, e fica impossível descobrir de onde vieram e se são confiáveis (2017).

Referências

TURNEY, Jon. Resposta popular à ciência e à tecnologia: ficção e o fator frankenstein. In: MASSARANI, Luisa; TURNEY, Jon; MOREIRA, Ildeu de Castro (Org.). Terra incógnita. A interface entre ciência e público, Rio de Janeiro: Vieira & Lente: UFRJ, Casa da ciência: FIOCRUZ, 2005. p. 99-114.

WOTTON, David. A internet está nos levando de volta a um mundo medieval. Consultor Jurídico. 10 jul 2017. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2017-jul-10/milenio-david-wootton-autor-breve-historia-fatos> Acesso em: 15 ago 2017.

1- Detalhes sobre a consultoria científica do filme, seu enredo e produção:

2- Link para o documentário Mercadores da Dúvida:

3- Publicação da revista Questão de Ciência, sobre como a mídia é utilizada na fabricação de controvérsias:

4- Saiba mais sobre a cloroquina e os testes com a substância:

5- Saiba sobre o fenômeno da pós-verdade e o papel das novas mídias:

6- Bolsonaro, eleições e redes sociais:
                                 

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Coronavírus e mudanças climáticas: a natureza está nos dando um toque



Nos primeiros dias desta quarentena imposta pelo coronavírus, em um programa matinal da Rede Globo, o ator Mateus Solano fez uma live de sua casa e disse que “a natureza está nos mandando um recado, nos dando um toque”. De fato, os primeiros dias de isolamento social fizeram muitos se sentirem em um daqueles filmes em que o fim do mundo está próximo, seja por causa de um vírus, uma catástrofe ou um ataque zumbi. O coronavírus nos lembrou da nossa fragilidade, do quanto precisamos de um ambiente equilibrado para coexistirmos e de outras outras espécies que já estiveram pela Terra e desapareceram. Os dinossauros são um exemplo. Como dizia Carl Sagan, “a sobrevivência é exceção; a extinção é a regra”.

E qual o maior perigo que ronda a permanência da espécie humana no globo terrestre nos últimos anos? A possibilidade de uma guerra nuclear torna-se mais iminente de vez em quando, conforme os acirramentos de tensões políticas. Mas, a despeito disso, certamente as mudanças climáticas são o principal risco alardeado pelos cientistas há décadas. Aliás, os cientistas, de certo modo, são herdeiros dos antigos profetas tocando as trombetas do fim do mundo. O físico Marcelo Gleiser, em seu livro O fim do céu e da Terra (2001), nos diz que “o desenvolvimento temático da ciência incorpora tendências da cultura popular e religiosa” (p. 174) e que “O fim da Terra, que, segundo profetizaram textos apocalípticos, seria causado por cataclismos ordenados por deuses ou por Deus, encontrou uma nova expressão na análise científica” (Ibid).

Mas, além da sensação de proximidade com o fim, qual a relação entre o coronavírus e as mudanças climáticas que estão aumentando a temperatura do planeta? Pois cientistas chineses e americanos descobriram, nas geleiras do Tibete, 28 grupos de vírus desconhecidos, congelados há 15 mil anos. Com o derretimento dos gelos glaciais, provocado pelas mudanças climáticas, existe a possibilidade de novos agentes patogênicos serem liberados, trazendo novos riscos para os seres humanos. O trabalho de pesquisa feito no Tibete pode ser estendido para outras geleiras e assim, quem sabe, encontrar novos vírus. 

Um exemplo parecido vem da Rússia. Em 2016, na península de Yamal, uma criança morreu e outras 23 pessoas contraíram antraz, uma doença infecciosa causada pela bactéria Bacillus anthracis. O antraz havia desaparecido da região há quase 80 anos, mas ressurgiu, segundo cientistas, como efeito colateral do degelo do permafrost. O  permafrost é um tipo de solo congelado encontrado no Ártico e rico em metano e matéria orgânica. O episódio 12 da série de TV Cosmos, apresentada pelo astrofísico americano Neil deGrasse Tyson, aborda o problema do permafrost. Tyson caminha pelo litoral de Drew Point, no Alasca. Ele lembra que no final da década de 1950, quando nasceu, aquele solo litorâneo, formado por permafrost, se partia, em média, seis metros por ano. Atualmente ele está sendo corroído em aproximadamente 15 metros por ano. E com isso o litoral local já encolheu em torno de um quilômetro e meio do fim da década de 1950 para cá.

Como se não bastasse o perigo da liberação de vírus e bactérias milenares, o degelo do permafrost libera altas doses de metano na atmosfera, que é um gás 28 vezes mais potente que o dióxido de carbono para o efeito estufa, porque retém mais calor. Quando você descongela o seu congelador, esse degelo começa a exalar um cheiro desagradável, por conta da gordura e resíduos que ficaram acumulados na placa de gelo durante muito tempo, correto? Com o permafrost ocorre algo parecido.

Quanto mais o permafrost derrete, mais libera metano e também dióxido de carbono na atmosfera, fora os vírus e bactérias. E quanto mais esses gases de efeito estufa circulam pela atmosfera, mais o clima da Terra esquenta, o que significa mais derretimento do permafrost e das geleiras em geral. Um sistema de retroalimentação que os cientistas chamam de “mecanismo de feedback positivo”. Quer outro exemplo? O gelo é a superfície mais brilhante da Terra e a água em mar aberto é a mais escura. O gelo, por ser brilhante, reflete a luz solar de volta para o espaço (o que é bom, porque ajuda a manter certo resfriamento da Terra), enquanto o espelho d’água do mar aberto, por ser escuro, absorve a luz solar e fica mais quente. A elevação da temperatura da água derrete ainda mais as geleiras, o que reduz ainda mais a superfície brilhante que reflete o Sol e aumenta a superfície escura da água que o absorve. E por ai vai. 

Política e negacionismo

Para evitar o caos das mudanças climáticas e outros problemas decorrentes, como a proliferação de vírus e bactérias que apresentam riscos ainda incalculáveis, é preciso políticas ambientais que tenham como objetivo frear o aquecimento global. No Brasil, a situação é complicada. O governo e suas principais lideranças adotam uma postura anticientífica e contrária às ações de combate às mudanças climáticas. Bolsonaro já ameaçou retirar o Brasil do Acordo de Paris, por meio do qual 200 países se comprometeram, em 2015, a tentar conter os prejuízos causados pelo aquecimento global e reduzir gases de efeito estufa. Líderes governistas, como Eduardo e Carlos Bolsonaro, já negaram o aquecimento global diversas vezes nas redes sociais e classificam o discurso das mudanças climáticas, que é baseado em amplas evidências científicas, como uma espécie de trama marxista. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é mais um exemplo de negacionista, chamando pejorativamente a política climática de “globalista” e usando termos como “ditadura climática” para classificar ações que têm por objetivo frear a elevação da temperatura da Terra.

Assim como o governo brasileiro tem sido negacionista em relação às mudanças climáticas, Bolsonaro e seus aliados mais próximos também adotaram uma postura negacionista e anticientífica diante do coronavírus. O presidente vem frequentemente criticando o isolamento social proposto por especialistas e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e tem aparecido publicamente descumprindo a quarentena, participando (e causando!) aglomerações. Mas, como destacou em entrevista o biólogo Átila Iamarino, a diferença é que enquanto no caso das mudanças climáticas os efeitos negativos das posturas anticientíficas se darão a longo prazo, com a covid-19 os resultados irão acontecer em um prazo mais curto. 

Como não existe salvação fora da política, a solução para nossos problemas políticos e ambientais é a estruturação de políticas que apresentem soluções adequadas aos problemas, que estejam, de fato, preparadas para responder a altura os desafios, tanto os de curtíssimo prazo, como o novo coronavírus, quanto os de mais longo prazo, como as mudanças climáticas. E olha que os problemas climáticos não estão tão distantes no horizonte. Eles batem a nossa porta e seus efeitos já são dolorosamente sentidos.      

Referências
GLEISER, Marcelo. O fim da Terra e do céu: o apocalipse na ciência e na religião. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Entrevista de Átila Iamarino no programa Roda Viva
https://www.youtube.com/watch?v=s00BzYazxvU

Episódio 12 da série Cosmos (2014) sobre mudanças climáticas e o permafrost
https://vimeo.com/153447904

Vírus encontrados nas geleiras do Tibet
https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/01/24/28-virus-desconhecidos-sao-encontrados-por-cientistas-em-geleiras-no-tibete.ghtml?fbclid=IwAR1Oi4S62J5OOc5A39DjJX2-y0jFjdw0KIt0Af31UYmiQh4cDF5RoQTzoRs

Casos de antraz na Russia por conta do degelo do permafrost
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2016/08/derretimento-de-solo-congelado-expoe-ameaca-de-virus-e-bacterias.html

O negacionismo climático do governo Bolsonaro
https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/sustentabilidade/meio-ambiente/ernesto-araujo-nega-aquecimento-global-em-discurso-nos-eua,66172f007894f76aa6c987a907da6ed0ohrnxqa0.htmlhttps://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-negacionismo-no-poder/

O metano e o aquecimento global
https://cetesb.sp.gov.br/biogas/2016/12/13/emissoes-de-metano-aceleram-aquecimento-global-mais-que-co2/

Série "Os últmos czares": as gaiolas de ouro de ontem e hoje


Nesta semana(*) completou 101 anos que a família Romanov foi executada pelos Bolcheviques na Revolução Russa. Para quem quiser saber mais sobre os anos de governo do czar Nicolau II, recomendo a série recém-lançada "Os últimos czares", disponível na Netflix. Embora eu tenha achado que a série, um documentário bastante dramatizado (muita participação de atores, meio docudrama), pareça "pegar leve" com Nicolau, que apesar da alcunha de "o sanguinário" foi feito santo pela Igreja Ortodoxa (que nesse ponto não se difere muito da Igreja Católica), o que me faz recomendá-la são possíveis links que se pode fazer com o cenário atual.

Uma coisa que a série deixa evidente é a total desconexão entre a família Romanov e a situação de miséria do povo russo. Os Romanov viviam em uma bolha, ou, como também se diz na série, uma "gaiola de ouro". Comecei a assistir "Os últimos czares" na ocasião em que pessoas de destaque do meio jurídico, como o juiz Marcelo Bretas e a deputada e procuradora Bia Kicis, assim como a jornalista Leda Nagle, fizeram declarações que romantizam e relativizam o trabalho infantil, partindo de exemplos pessoais de trabalhos em negócios de família. Não se trata apenas de estupidez ou maucaratismo, mas de uma desconexão com a realidade, uma incapacidade e desinteresse em ver o mundo para além de suas bolhas de pessoas bem nascidas e criadas.

Na série, quando o tio de Nicolau, o político aristocrata de extrema-direita Sérgio Alexandrovich, é executado em sua carruagem num atentado promovido pela esquerda, sua esposa, Isabel, não tinha a menor noção das motivações que teriam levado ao atentado. Ela vai ao encontro do terrorista-revolucionário no presídio perguntar a ele o porquê e não consegue entender o que ele diz, não consegue compreendê-lo. Diz a ele que o perdoa. Ele, por sua vez, responde: "eu não preciso do seu perdão".

Por viver em uma bolha de luxo e riqueza cercada de aduladores, a dinastia Romanov parecia incapaz de se dar conta da revolução que se formava. Aqui pelos nossos dias, o presidente do Brasil disse ser uma "mentira" que se passe fome no país. Mais uma vez a velha tendência de se reduzir a realidade ao próprio campo de observação. Tendência que vem sendo característica do governo Bolsonaro e de sua defesa. Ele, morador de um condomínio de luxo da Barra da Tijuca, aliado de ruralistas e grandes empresários, parece desinteressado em falar sobre miséria e desigualdade social, em sair de sua gaiola de ouro. E, se ele não enxerga, então é porque não existe.

Só não esperemos uma revolução. Vivemos tempos de anestesia e até conivência.


* Texto originalmente publicado no dia 22 de julho de 2019, no Facebook do autor.



quarta-feira, 8 de abril de 2020

Mas afinal, o que é fascismo?



Isso é fascismo! Fulano e Beltrano são fascistas! Ao menos no vocabulário, o fascismo está em voga. Mas, afinal, o que é fascismo? Será que ele também tem sido marcante em nosso cenário político atual ou virou só uma nova forma de xingamento? O termo é tão utilizado quanto de difícil definição. A propósito, seu uso indiscriminado e generalizado torna sua conceituação ainda mais complexa. Para aqueles que buscam melhor compreensão do termo, tenho duas sugestões. Uma é um caminho curto; a outra é um caminho mais curto ainda. A primeira é a leitura do excelente e finíssimo livro Fascismo Eterno, do escritor italiano Umberto Eco. Nesta obra Eco trabalha com o conceito de "Ur-fascismo", que é basicamente um conceito mais elástico e abrangente para a caracterização do termo fascismo. Já o caminho curtíssimo, você pode trilhar aqui mesmo, lendo os próximos parágrafos, extraídos de um ótimo texto do filósofo Rodrigo dos Santos Manzano e publicado na revista Filosofia, Ciência e Vida:  


“De uma forma bem simples, o fascismo pode ser definido como uma teoria política autoritária, paradoxalmente excludente e inclusiva. Inclusiva pois prega um forte coletivismo, porém, de cunho diferente do que prega o marxismo. Não se trata de um coletivismo que tem por base atender às necessidades de todos, superando a desigualdade e a exploração de classes, mas um coletivismo que nega a luta de classes, pois para o bem de um povo, de uma nação, as diferenças devem ser deixadas de lado, inclusive as diferenças sociais, tendo por base um intenso conformismo ante a desigualdade social. Excludente pois historicamente os regimes fascistas elegem inimigos comuns, grupos que são párias na sociedade, sanguessugas que impedem o desenvolvimento da nação, geralmente porque são sustentados pelo Estado, ou usam o mesmo a seu favor, somente para os seus interesses e não para o bem da coletividade. Trata-se ao mesmo tempo de uma teoria conservadora, no sentido de não propor mudanças estruturais voltadas ao desenvolvimento da sociedade, mas com um discurso de renovação, sendo uma deturpação dos ideais socialistas, pregando o coletivismo mas abolindo qualquer menção à luta de classes, aliás, sendo um coletivismo que abafa a luta de classes e não que busca sua superação com a eliminação das mesmas.

É importante ressaltar o quanto o fascismo, apesar de sua pregação coletivista, nada tem a ver com o socialismo ou marxismo, uma vez que hoje difunde-se a ideia de o fascismo ser “de esquerda”. Qualquer um que ler o ‘Mein Kampf’, obra autobiográfica de Adolf Hitler, poderá perceber o quanto o chanceler alemão tinha verdadeiro ódio das teorias socialistas, inclusive dizendo que o bolchevismo não passava de uma teoria judaica, parte de uma conspiração para implantar seu plano de dominação mundial. Sem contar que o próprio fascismo surge como um movimento radical de direita para conter o possível sucesso socialista de revoluções após a Revolução Russa de 1917, principalmente em uma Europa fragilizada pelo pós-Primeira Guerra e a crise da Bolsa de 1929.

O que se percebe é que o fascismo ganha força em locais de forte crise político-econômica. A pregação de que a nação tem um grande futuro, mas não o consegue alcançar, que há um destino sobrenatural a ser atingido pela grandeza do seu povo, mas não o atinge, é um ponto central do discurso fascista. Daqui reforça-se o discurso racista existente no fascismo. Uma etnia pura consegue grandes feitos, mas as impurezas de povos menos desenvolvidos, menos evoluídos, também são fator para o atraso de um povo. (...) A teoria fascista é basicamente uma teoria conservadora ao extremo, opondo-se ao legado iluminista. Se por um lado o Iluminismo trouxe grandes mudanças para a sociedade europeia, e consequentemente para o resto do mundo, baseado em ideias como liberdade, igualdade e fraternidade, os avanços que se conquistaram com a derrubada do antigo regime e a chegada do estado de direito logo precisaram ser barrados. Assim, o fascismo é a plena expressão de um resgate, sob outra roupagem, de ideias do antigo regime. Estado forte, submissão ao governante, justificativa do poder do governante sob cunho metafísico (...). Assim, o fascismo é não só oposto ao socialismo, mas também oposto aos ideais iluministas, representando um retrocesso dentro dos ideais burgueses, mostrando o conflito de uma burguesia outrora revolucionária e agora reacionária”

(Rodrigo dos Santos Manzano – Revista Filosofia, Ciência e Vida, ed. 157, dezembro de 2019)

Hélio Negão veste Tatcher: representatividade, memória e história política



Toma posse hoje(*) na Câmara Federal os 513 deputados eleitos pelo povo brasileiro para um mandato de 4 anos. Desses, 46 são do estado do Rio de Janeiro. Para quem não sabe, o deputado federal mais votado no Rio de Janeiro foi Hélio Fernandes Barbosa Lopes, vulgo “Hélio Negão”, que aparece ao lado de Bolsonaro nesta live. Se você sabe pouco sobre ele, então somos dois. Hélio foi mais um daqueles fenômenos eleitorais imprevisíveis e meteóricos ocorridos na última eleição, semelhante ao que aconteceu na disputa para o cargo de governador e resultou na vitória do então desconhecido Wilson Witzel.

Hélio, dois anos antes, havia sido candidato a vereador em Nova Iguaçu e obtido apenas 480 votos. Mas na última eleição, para deputado federal, saltou para 345 mil votos. Impressionante! Alguns de seus simpatizantes chamaram a atenção para o fato de ele ser um negro eleito sem fazer “vitimismo”. Outros disseram que o movimento negro, mais relacionado ao espectro político da esquerda, não deu a devida importância ao fato de o candidato mais votado do RJ ser negro, somente porque esse candidato é alinhado à direita.

Então, ao que interessa: uma possível resposta a essas críticas está na própria foto. Hélio Negão veste uma camisa branca com o rosto de Margaret Thatcher. Para quem não sabe, Margaret Thatcher foi primeira-ministra do Reino Unido nas décadas de 70/80 e deu apoio político ao regime de apartheid que vigorou na África do Sul por mais de 40 anos. O regime segregava negros e brancos e limitava os negros a serem cidadão de segunda classe. A eles não era permitido votar, frequentar determinados locais públicos, possuírem terras e terem relações sexuais com pessoas brancas.

Por lutar contra o regime de apartheid, Nelson Mandela, um dos maiores líderes negros da história, foi chamado de “terrorista” por Margaret Thatcher, de quem Hélio Negão é declaradamente fã. Você não entendeu errado. Hélio Negão é fã de uma primeira-ministra branca e europeia que chamou de terrorista um líder político negro que lutou para que pessoas como o próprio Hélio tivessem o direito de votar, ser votado e tomar posse, coisa que o Hélio está fazendo hoje.

Qual a explicação para que pessoas como Hélio Negão abrace tendências políticas aparentemente tão contraditórias? Síndrome de Estocolmo? Analfabetismo político e histórico? Tenho minha opinião. Mas certamente cor da pele não basta sem levar em conta as causas pelas quais se luta. O ser humano é contraditório e exemplos disso é o que não faltam. Resta torcer para que Hélio Negão honre seus milhares de votos e represente bem o povo do RJ, negros, brancos e etc.


* Texto originalmente publicado no dia 1° de fevereiro de 2019, no Facebook do autor. 

Narcotráfico, violência e a responsabilização do usuário de drogas



Do ponto de vista estratégico/político, eu até entenderia se o governador Witzel não quisesse se pronunciar sobre o caso da morte da menina Ágatha para tentar desvincular sua imagem pessoal do caso (não estou dizendo que eu concordaria com a estratégia, apenas que a entenderia). Mas ao se pronunciar(*), utilizando o argumento raso de responsabilização do usuário de drogas pelas mortes e pelo tráfico, ele conseguiu piorar muito as coisas. Eu teria outros adjetivos para classificar esse tipo de argumento, dadas as circunstâncias em que o mesmo foi utilizado, mas, pela minha falta de paciência, prefiro me limitar a chamá-lo de superficial e tentar explicar o porquê. Infelizmente, é um argumento tão raso quanto freqüente.

Quando a pessoa diz que “a culpa pelo narcotráfico é de quem compra a droga”, embora ela ache que está falando algo sensacional, está repetindo uma superficialidade. Claro que, do ponto de vista da lógica, se há oferta é porque há demanda, mas isso é de uma obviedade tão grande quanto dizer que existe calçado porque existe pé. Acontece que quando a pessoa repete esse argumento (a culpa pelo tráfico é de quem consome maconha ou cocaína) ela dá a entender que acredita na possibilidade de uma sociedade sem drogas. Mas NUNCA HOUVE SOCIEDADE SEM DROGAS. O consumo de drogas existe desde a antiguidade. No mês retrasado, por exemplo, foi veiculada uma reportagem, com base em vestígios recém-encontrados, sobre consumo de maconha por monges chineses há 2.500 anos(1). Ou seja, estamos falando de uma época de antes de Cristo.

Esperar por uma sociedade sem drogas para que acabe a violência provocada pelo crime organizado é algo ingênuo e utópico. Esperar que o consumo de drogas cesse como num passe de mágica é conto de fadas. Drogas (mesmo as ilícitas) sempre existiram e sempre existirão. O que pode ser feito é discutir uma política educacional e anti-drogas que reduza os problemas gerados pelo consumo das drogas em vez de ampliá-los. No Brasil, lamentavelmente, a legislação e a política criminal pioram esses problemas em vez de reduzi-los. E pioram de que forma? Cito dois exemplos:

1- A guerra as drogas mata mais do que as próprias drogas. O que é um absurdo! Se para combater uma coisa você provoca mais mortes do que a própria coisa, se morre mais gente em confrontos armados (incluindo policiais e crianças como a Ágatha) do que de overdose, então vale refletir sobre até que ponto esse combate vale a pena.

2- O Brasil é um caso fora do comum no mundo, um caso atípico, em que as principais organizações criminosas são gestadas não nas ruas, mas dentro dos próprios presídios. É o caso, por exemplo, do Comando Vermelho e do PCC. Ou seja, a política criminal encarcera e depois devolve para sociedade algo ainda pior do que aquilo que encarcerou. É como se o sistema penitenciário brasileiro, um dos maiores do mundo, fosse um caldeirão que fermenta e faz apodrecer algo que já é ruim. Sobre a forma como o encarceramento potencializa o crime organizado no país, recomendo o quinto episódio – “Universidade do Crime” – da série Guerras do Brasil(2), disponível na Netflix.

Quando Witzel ou tantos outros repetem que “a culpa pelo tráfico e pela violência é de quem compra maconha ou cocaína”, estão tirando o foco de problemas complexos e estruturais para lançá-lo sobre a conduta moral de alguns indivíduos que usam drogas e que, por mais que tenham lá alguma parcela de culpa, não são nem de longe o problema principal. Deixa-se de discutir o quanto a legislação e a política anti-drogas são ruins para discutir a obrigatoriedade de adequação dos indivíduos a uma legislação e política ruins. Cabe aqui uma reflexão: se a cerveja que você consome fosse proibida por lei a partir de amanhã, você deixaria de consumi-la ou passaria a buscá-la no mercado negro? A série documental “Prohibition”(3), da Netflix, sobre a aprovação da 18ª emenda nos EUA, mais conhecida como “Lei Seca”, e seus efeitos desastrosos na década de 1920, como o aumento da criminalidade e o fortalecimento de gangsters como Al Capone, ajuda a fazer essa reflexão.

Aí vem a segunda parte do problema. Diferentemente do que muitos pensam, a legislação, que define o que é permitido e o que é proibido, não necessariamente é elaborada com base em critérios técnicos e científicos (embora em alguns casos eles possam ser levados em consideração). Não há evidências científicas determinantes que afirmem, por exemplo, que a cerveja pode ser vendida e a maconha deve ser proibida. Os critérios, na verdade, são muito mais políticos e econômicos do que científicos. Sobre isso, recomendo o livro “O que os donos do poder não querem que você saiba”(4), do economista Eduardo Moreira. A intencionalidade que molda uma legislação anti-drogas não é a tutela da saúde da população, mas a consolidação de uns grupos econômicos no mercado, em detrimento de outros. Não é difícil constatar isso olhando para a realidade brasileira. A guerra às drogas funde-se com a guerra contra a pobreza, concentrando-se em comunidades mais pobres. Por outro lado, o Brasil é o país de origem de uma gigante mundial das cervejarias, a Ambev, cujo proprietário, Jorge Paulo Lemann, é o brasileiro mais rico do mundo. Outro filão comercial que fatura (e muito!) com a legislação é o setor farmacêutico. O Brasil é um dos maiores mercados desse setor no planeta(5). Em uma voltinha pelo centro comercial de sua cidade, provavelmente será possível você avaliar isso pela quantidade de farmácias por metro quadrado.


* Publicado originalmente no dia 24 de setembro de 2019, no Facebook do autor.

FONTES:
1: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/12/ciencia/1560325693_718056.html
2: https://www.netflix.com/br/title/81091385
3: https://www.netflix.com/br/title/70281600
4: https://www.saraiva.com.br/o-que-os-donos-do-poder-nao-querem-que-voce-saiba-9864064/p
5: https://guiadafarmacia.com.br/materia/brasil-e-o-sexto-maior-mercado-farmaceutico-do-mundo/

Pronunciamento do Witzel: https://www.facebook.com/watch/?v=423872084910614

O negro, a ciência e os buracos negros: você conhece John Michell?

Ontem(*) astrônomos apresentaram pela primeira vez a imagem de um buraco negro. O feito já é considerado um marco na história da física e foi conseguido graças à alta tecnologia de telescópios capazes de captar a luz emitida pelo intenso calor provocado pelo movimento orbital: uma forma de disco em torno do buraco negro, como se fosse água em um ralo.

Certamente, em meio a tantas notícias a respeito do feito, você deve ter lido referências a cientistas como Albert Einstein e Stephen Hawking. Com toda justiça, pois eles pesquisaram muito sobre o tema. Mas, no lado “escuro” da história e pouco referenciado está o astrônomo negro John Michell, que também merece sua menção honrosa. Seus estudos, no século 18, antes de Einstein, Hawking e etc., apontaram para a existência do que chamou de “estrelas escuras”, mais tarde rebatizadas de “buracos negros”.

A ciência, assim como a arte, a política, a cultura e diversas áreas de expressão da nossa sociedade, não está isenta de assimilar e reproduzir preconceitos e valores. A história da ciência moderna, por exemplo, é uma história predominantemente eurocêntrica (também um tanto norte-americana), masculina e branca. Reconhecer isso não é, de modo algum, desprestigiar grandes nomes como Newton, Faraday ou Darwin, nem abrir mão das tentativas de objetividade dos métodos científicos, mas apenas reconhecer as forças sociopolíticas que ditam o jogo da ciência ao longo de sua história.

O Renascimento e o Iluminismo são fenômenos predominantemente europeus que influenciaram com algumas ideias o desenvolvimento do que hoje entendemos como ciência, mas essas ideias, em certa medida, foram discutidas anteriormente em outras partes do mundo. O etíope Zera Yacob defendia a primazia da racionalidade e que todos os seres humanos são iguais mais de um século antes de Locke, Hume e Kant. O ganês Anton Amo usou conceitos da filosofia alemã antes de ela ser registrada oficialmente, defendeu o sufrágio universal e o fim da escravidão antes dessas ideias ganharem corpo na Europa.

Cerca de mil anos antes de Darwin, um filósofo muçulmano que vivia no Iraque, conhecido como Al-Jahiz, escreveu um livro sobre como os animais mudam com o passar das gerações, de acordo com o ambiente, através de um processo que também chamou de seleção natural. Seu nome real era Abu Usman Amr Bahr Alkanani al-Basri. Seu apelido, Al-Jahiz, significa alguém com olhos esbugalhados.


Ao tratar dos buracos negros, a segunda versão da série Cosmos, apresentada pelo astrofísico negro Neil deGrasse Tyson, faz uma menção honrosa a John Michell e suas “estrelas escuras”. “John Michell é um dos maiores cientistas dos quais você provavelmente nunca ouviu falar”. Há ainda uma metáfora: da mesma forma que não se é possível ver um buraco negro (pelo menos não era até o lançamento da série), o cientista negro John Michell também foi invisibilizado pela história da ciência. Por isso, o ator negro que interpreta Michell aparece brevemente e de costas. Tyson, o apresentador, diz: “Se alguma vez foi pintado, o retrato não existe mais. [Michell] foi descrito por um conhecido como um homem baixo, de pele escura e gordo”. Um cientista de pele escura identifica estrelas escuras. Ambos são invisíveis. O primeiro, no tempo. As segundas, no espaço.

Os tempos estão mudando, mas eles não mudam sozinhos. É preciso mobilização, esforço e compreensão das questões filosóficas, sociológicas e políticas que regem a ciência e a sociedade para que se possa reivindicar maior inclusão. A diversidade é benéfica para a ciência. O buraco negro se tornou visível. Quem sabe não é uma nova metáfora para mais visibilidade a cientistas negros, “estrelas escuras” que, apesar de não vistas, há muito estão por aí, contribuindo para o avanço científico.





* Texto originalmente publicado no dia 11 de abril de 2019, no Facebook pessoal do autor

Referências:

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47577118?SThisFB&fbclid=IwAR0sqJGn3vtBx3fR4o-jeHynVE8jIaYglAMMmLX6S7pJKb4Uty5SoD_IIAs

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/12/1945398-os-africanos-que-propuseram-ideias-do-iluminismo-antes-de-locke-e-kant.shtml

https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/04/10/astronomos-apresentam-a-primeira-imagem-de-um-buraco-negro-ja-registrada.ghtml

https://www.documentáriosonline.blog.br/2014/04/cosmos-episodio-04-escondido-na-luz.html

https://www.nexojornal.com.br/externo/2017/11/19/Por-que-a-filosofia-é-tão-importante-no-ensino-da-ciência?fbclid=IwAR2OPpvqpbi0Bg-t17O5fQHE_oeBLVbTWu7AVUYgkOxuxpgA__ZGzqPV0h0

(imagem: série Cosmos, 2014, episódio 4)

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