quinta-feira, 23 de abril de 2020

Na quarentena com Bertrand Russell: como aproveitar bem o seu tempo?


Responder a essa pergunta – como aproveitar bem o seu tempo? – não é uma tarefa simples. A própria pergunta é complexa e até capciosa, afinal, nem todos nós estamos dispondo de mais tempo livre durante este período de isolamento social ou quarentena. Há aqueles que continuam trabalhando normalmente; há os que acumularam mais tarefas; há os que até estão com tempo livre, porém  com uma perda significativa de renda. Logo, a resposta para a pergunta deve passar, invariavelmente, pela questão do trabalho e do papel que ele ocupa em nossas vidas, incluindo o tempo de vida que ele ocupa ou preenche. 

Assim que o período de isolamento social – melhor medida preventiva comprovada até o momento para reduzir o número de infectados pelo coronavírus – começou, logo vieram diversas publicações e reportagens dando dicas de como preencher o tempo e até do que fazer para evitar adoecimentos mentais como a depressão, desengatilhados às vezes pelo tédio imposto pelo tempo ocioso. Isso é curioso, pois sugere que existe uma certa desorientação por parte de muitas pessoas quando se veem desvinculadas de suas rotinas profissionais, sem as rédeas dos horários de entrada, almoço, saída, locomoção para a ida e a volta etc. 

Isso me faz lembrar um caso que aconteceu no meu trabalho. Estávamos eu e um colega de profissão conversando sobre o volume de trabalho em nosso setor, mas não de uma forma negativa. Pelo contrário, ele destacou que em uma outra instituição, que funciona perto de nosso local de trabalho, o setor equivalente ao nosso (mesma função/mesmo tipo de serviço) estava meio ocioso, com pouquíssima coisa para fazer por conta da falta de aparelhagem para a execução das tarefas. “Eu iria morrer”, disse o meu colega sobre a possibilidade de estar na pele daqueles funcionários supostamente sem muito que fazer. Ficaria entediado. Fiquei surpreso ao ouvir que ele “iria morrer”. “Eu iria viver!”, pensei na mesma hora. Pois me vieram à cabeça meus cursos a distância e outros projetos que eu poderia tocar em frente ou mesmo desenvolver com o tempo excedente por conta das limitações materiais do setor de trabalho. Não seria tão ruim. Pelo contrário, seria bom. Coisa para fazer a gente sempre arruma, sejam atividades edificantes (penso nos cursos), sejam atividades de entretenimento (penso nos joguinhos). Mas a questão intrigante é: por que tantas pessoas se veem tão dependentes de suas rotinas e práticas profissionais a ponto de não conseguirem se imaginar preenchendo seu tempo com outras coisas e, pior, achando que ficariam mal com o tempo livre? Vale destacar que o relato pessoal que trago não ilustra um tempo livre que resultaria em perda de dinheiro (caso do desemprego, por exemplo), apenas um tempo livre sem ônus financeiro, uma diminuição da carga de trabalho. Então porque ver isso como algo negativo?          

Cinquenta anos sem Bertrand Russell

Seria então coincidência que o matemático e filósofo galês Bertrand Russell, autor de O elogio ao ócio (1932) tenha completado 50 anos de sua morte em fevereiro, justamente no período de isolamento social em alguns países por conta da pandemia? Sim, seria! Entretanto, podemos nos valer de algumas de suas ideias para pensar na resposta a nossa pergunta e para refletir sobre a pergunta. Russell nasceu no século 19, em 1872, e se tornou um dos maiores pensadores do século 20, sendo um dos criadores da escola de filosofia analítica, movimento filosófico que propôs que a filosofia deve se valer de técnicas lógicas para obter clareza conceitual, buscando aproximação com a ciência moderna. Os filósofos analíticos, como Russel, valorizavam a clareza e a precisão argumentativa, tendo na linguagem sua principal ferramenta.  

Bertrand Russell ficou conhecido por suas posições políticas, que por sua vez guardavam relação com sua obra. Pacifista, opôs-se à participação britânica na Primeira Guerra Mundial e, décadas depois, encabeçaria junto com o físico Albert Einstein um manifesto contra as armas nucleares. Engajado em questões feministas, defendia a igualdade de direitos (políticos e sexuais) entre homens e mulheres e dizia que a intervenção cristã na educação era degradante para as mulheres, reforçando a dominação sobre elas [1]. Mas são suas reflexões sobre trabalho e tempo que mais nos interessam.

Tempo e trabalho

O ex-presidente uruguaio e “quase-filósofo” (por que não?) José “Pepe” Mujica diz que "quando compramos algo, não compramos com dinheiro, compramos com o tempo de vida que tivemos que gastar para ter aquele dinheiro" [2]. Há uma relação intrínseca entre trabalho, tempo e dinheiro na sociedade contemporânea capitalista. A grande maioria de nós precisa trabalhar (e, normalmente, trabalhar muito!!) para ter dinheiro. E, para trabalharmos, ocupamos nosso tempo. Às vezes tanto de nosso tempo é dedicado ao trabalho que sobra pouco para outras atividades. Se você é um dos privilegiados que teve uma redução da carga de trabalho durante esse período de isolamento social, talvez possa refletir sobre o quanto teve mais tempo disponível para fazer coisas do seu agrado. Coisas que tem a ver com quem você é, que fazem você se sentir você mesmo. Seja pintar um quadro ou assistir a filmes do seu gênero favorito. Mais do que isso, talvez você tenha convertido o tempo livre em cuidado e proximidade com a família e tenha percebido o quanto isso é bom: poder dar mais atenção aos filhos, aos pais, às tias, quem sabe.

Mesmo que a carga de trabalho não tenha sido reduzida, ainda assim muitos profissionais que migraram para suas casas neste período de pandemia sentiram-se livres do fardo do transporte diário de ida e volta ao trabalho. Dependendo da cidade onde se more e do bairro, só em economizar esse tempo já dá para se fazer muita coisa. Pois é sobre o trabalho e, consequentemente, sobre o tempo, que Bertrand Russell lança sua análise em O elogio ao ócio. O filósofo define o trabalho em dois tipos: o primeiro é mais “físico”, visa "alterar a matéria"; o segundo, mais “intelectual”, visa instruir ou supervisionar aqueles que estão trabalhando na alteração da matéria. Explico: imagine uma fábrica de cadeiras e que você é um operário dessa fábrica. Você e seus colegas são encarregados de talhar a madeira, polir, envernizar e pregar as peças para construir as cadeiras. A matéria, neste caso, é a madeira que é extraída das árvores, e vocês são os trabalhadores do primeiro tipo, aqueles que movem a matéria. Os trabalhadores do segundo tipo seriam, no caso, alguns supervisores da fábrica, que controlam o trabalho dos operários, além de alguns designers, responsáveis por projetar os modelos de cadeiras. 

A esses dois tipos de trabalhadores estão associadas, de modo geral, as classes sociais. Indivíduos de classe baixa (ou classe operária) normalmente são trabalhadores do primeiro tipo; indivíduos de classe média são, em grande medida, trabalhadores do segundo tipo. O trabalho do segundo tipo tende a ser menos extenuante e melhor remunerado que o do primeiro. E mais, esse segundo tipo de trabalho pode ser estendido quase que indefinidamente: há os supervisores, os supervisores dos supervisores, os supervisores dos supervisores dos supervisores e por aí vai... Claro que esses cargos não são assim tão literais, mas sim batizados com nomes pomposos. Quem sabe “supervisor-executivo”, e acima o “supervisor-geral”, e acima o “diretor-geral de supervisão”...

Curioso é observar que, na medida em que o trabalho vai se distanciando da matéria, ou seja, do chão da fábrica, a remuneração tende a melhorar. Entretanto, são aqueles trabalhadores do chão da fábrica (ou da ponta do atendimento) ainda os mais essenciais para a atividade-fim (a produção de cadeiras, em nosso exemplo). Isso vale não só para produtos, mas também para serviços. O fiscal da linha de ônibus que você pega para ir ao trabalho é importante, mas não tanto quanto o motorista que vai conduzir o veículo de sua casa até seu escritório. Tempos como esses, de paralisação de muitos empreendimentos, desnudam o óbvio: a essencialidade de serviços ESSENCIAIS. O problema é que a remuneração, na maioria das vezes, não acompanha essa essencialidade. O motorista que te leva e traz, o padeiro que faz o seu pão, o coveiro responsável pelo seu enterro (espero que você não precise disso, mas lamentavelmente o coronavírus tem aumentado a demanda por sepultamentos) são importantíssimos, porém muito mal pagos. 

Às duas classes de trabalhadores, Russell acrescenta uma terceira: a dos proprietários, que estão ainda mais distantes da matéria (do chão de fábrica ou da ponta do atendimento), portanto mais ociosos, dependendo do trabalho dos outros para manter sua ociosidade. E é justamente essa classe beneficiária do sistema quem mais costuma exaltar as virtudes da “labuta honesta”, justamente porque se beneficia dessa propaganda. Você já deve ter ouvido frases como “o trabalho enobrece o homem”. Para Russell, isso é balela. “Um dano imenso é causado pela crença de que o trabalho é virtuoso” (apud, BUCKINGHAM et tal, 2011, p. 2380) dizia ele. 

Porém, a crítica de Russell não era voltada contra todo tipo de trabalho, mas sim contra a ideia de que o trabalho é virtuoso em si mesmo. Ao questioná-la, ele queria nos fazer refletir sobre o quanto nossa relação com o trabalho – e com o tempo – pode estar baseada em uma ética incoerente e hipócrita: ao mesmo tempo em que vemos no trabalho algo que dá dignidade ao homem, criamos uma hierarquia de valores que inferioriza, por exemplo, o trabalho braçal e alguns serviços essenciais. Russell queria que pensássemos com profundidade sobre o porquê de trabalharmos e que enxergássemos o trabalho não por meio de dogmas morais influenciados pelas elites, mas com um olhar questionador, nos perguntando em que medida nosso trabalho – e o trabalho, de forma geral – contribuem para termos uma vida plena e satisfatória.

Raízes marxista e weberiana

Leitores mais atentos já devem ter notado a semelhança entre o pensamento de Russell e o de Karl Marx, principalmente quanto à luta de classes e o modo como os proprietários dos meios de produção são menos importantes para o sistema produtivo do que os mesmos fazem supor. Mas para melhor compreender a abordagem de Russell sobre tempo e trabalho vale a pena a leitura de outro importante sociólogo, Max Weber. Em Ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber mostra como muito da ideia que fazemos hoje em dia sobre o trabalho e o tempo tem raízes na ascensão da burguesia, lá pelo século 16, principalmente de uma burguesia particularmente ligada aos protestantes calvinistas. Para eles, o sucesso no trabalho e a aquisição do dinheiro eram sinais de “escolha divina”. Muito religiosos, viam os luxos e prazeres da época como pecaminosos. Como não podiam ou não queriam gastar o dinheiro que ganhavam com essas coisas, passaram a reinvestir esse dinheiro para fazer mais dinheiro. Era preciso trabalhar cada vez mais para ganhar mais e reinvestir. E assim sucessivamente. Antes desse período, por exemplo, na Idade Média, a nobreza não cultuava o trabalho, mas sim o ócio [3]. 

A ascensão da burguesia protestante calvinista gerou uma mercantilização do tempo. A ideia de que tempo é dinheiro. Se hoje você se sente culpado ou culpada porque não está trabalhando tanto quanto de costume ou mesmo sente tédio com isso, sem saber como preencher o próprio tempo, é porque já tem arraigada dentro de si essa ética do trabalho apontada por Weber e criticada por Russell. E pouco importa se você é um protestante calvinista, um católico, budista ou ateu. As religiões fazem certas contribuições ao pensamento da sociedade que a gente absorve mesmo sem professá-las. 



Conclusões

Mas como aproveitar bem o seu tempo? Sabendo de todas essas coisas, você deve evitar cair na armadilha da produtividade a qualquer custo com a execução de tarefas ligadas a um trabalho que não te faz feliz. Muita gente se acostuma com o trabalho que tem e até diz que gosta dele, mas está só mentindo para si próprio. Russell nos faz refletir de forma mais profunda e crítica sobre até que ponto nosso trabalho nos é satisfatório. Se o seu trabalho não te satisfaz, não se sinta tão culpado por estar ocioso (caso você realmente tenha o ócio como opção neste momento!). Não é preciso fazer mil cursos para investir em uma carreira que não te motiva. 

A ideia de aproveitar bem o tempo é muito relativa. Para alguns, bom aproveitamento de tempo está ligado à produtividade; para outros, está ligado à diversão e entretenimento. Qual o seu caso? Se você é adepto da produtividade, lembre-se que essa produtividade não precisa estar necessariamente ligada ao seu emprego ou trabalho formal. O importante é você fazer algo de que goste e que faça você se sentir produtivo. Pode ser a hora de fazer um curso que não tenha relação direta com a sua formação, estudar um idioma alternativo (mandarim, quem sabe) ou se reencontrar com a sua veia artística. Aliás, os artistas amadores sabem bem o que é o sentimento de ter que vender grande parte de seu tempo trabalhando em um emprego qualquer para pagar as contas e, em uma vida paralela, com o pouco tempo que lhes sobra, desenvolver sua arte, seja ela desenho, pintura, fotografia, música, literatura. Aliás, gosto muito do exemplo de Franz Kafka, um dos maiores nomes da história da literatura, que escrevia para se aliviar do peso de um trabalho enfadonho como burocrata de seguros. Certamente ele teria nos deixado uma obra mais ampla se pudesse trabalhar menos. 

Mas se você é daqueles que acha que o aproveitamento do tempo é sinônimo de diversão ou mesmo de ócio, permita-se distrair a cabeça ou descansar. Não se culpe achando que está perdendo tempo. Para Russell, “o tempo que você gosta de perder não é tempo perdido” [4]. Acho essa uma frase simples e que faz todo sentido. Por fim, Russell conclui que se todos começarem a refletir sobre o trabalho de forma crítica e livre das amarras ideológicas da burguesia capitalista, a conclusão da maioria será a de que estamos trabalhando demais. A proposta do filósofo era uma jornada de trabalho ideal de quatro horas. Ele fez algumas conjecturas sobre como seriam nossas vidas e a sociedade de modo geral sem o peso extenuante do trabalho. Para Russell, ao nos dedicarmos mais ao lazer, haveria impactos positivos na educação e na arte. Na educação, porque teríamos uma educação não restrita apenas à formação para o mercado de trabalho, mas voltada para o desenvolvimento de nossos talentos e potencialidades. Nas artes, porque nos sobraria mais tempo para nos dedicarmos a produzi-la, apreciá-la, incentivá-la. 

Será possível um mundo tal como idealizado por Bertrand Russell, em que o trabalho não tome tanto o nosso tempo? Um mundo sem o protagonismo tamanho do mercado e do dinheiro? Não sei responder, mas creio que sim. Pense no quanto de habilidades, diversões e novos saberes você poderia praticar com algumas horas de sobra em um trabalho de jornada reduzido. O quanto você poderia se desenvolver enquanto ser humano? Você poderia ser, por mais tempo, quem você é, usando seu tempo para você e do seu jeito. Confesso que não sou tão exigente quanto Russel. Eu adoraria ver institucionalizada uma carga horária de cinco horas de trabalho por dia (estaria de bom tamanho!). Aliás, também tenho uma proposta! E se em vez de reduzirmos a carga horária diária, reduzíssemos os dias de trabalho na semana (com cada um de nós trabalhando quatro ou cinco dias úteis, em vez de cinco ou seis)? Penso nessa possibilidade pois o período de isolamento social me fez refletir não só sobre o uso do tempo e peso do trabalho, mas também sobre muitas outras coisas, como mobilidade urbana, por exemplo.  Nas raras vezes em que precisei sair de casa, confesso que achei bom ver algumas ruas vazias, menos filas e o trânsito sem engarrafamento (se você mora em uma grande cidade, certamente vai entender o que eu digo). Daí pensei no quanto poderíamos adaptar as ideias de Russel, sobre carga de trabalho, para reduzir o problema ambiental e de mobilidade que é o excesso de veículos. Com as pessoas trabalhando menos dias, haveria menos carros nas ruas e menos dióxido de carbono emitido no ar. Por que não? Precisamos aprender algumas lições com este período de pandemia e, em vez de termos pressa de voltar à normalidade, devemos usar o aprendizado para estabelecer uma nova normalidade, um pouco melhor. 

Referências
BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas; HILL, Clive; KING, Peter J; MARENBON, John; WEEKS, Marcus. O livro da filosofia, São Paulo: Editora Globo, 2011.

RUSSEL, Bertrand. O Elogio ao ócio. Disponível em: http://tele.sj.ifsc.edu.br/~msobral/pji/ElogioOcio.pdf  Acesso em 23 abr 2020.

1- Mais sobre Bertrand Russel:

2- Frase de José Mujica:

3- Saiba mais sobre A ética protestante e o espírito do capitalismo, obra de Max Weber:

4- “O tempo que você gosta de perder não é tempo perdido”

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