sexta-feira, 10 de abril de 2020

Coronavírus e mudanças climáticas: a natureza está nos dando um toque



Nos primeiros dias desta quarentena imposta pelo coronavírus, em um programa matinal da Rede Globo, o ator Mateus Solano fez uma live de sua casa e disse que “a natureza está nos mandando um recado, nos dando um toque”. De fato, os primeiros dias de isolamento social fizeram muitos se sentirem em um daqueles filmes em que o fim do mundo está próximo, seja por causa de um vírus, uma catástrofe ou um ataque zumbi. O coronavírus nos lembrou da nossa fragilidade, do quanto precisamos de um ambiente equilibrado para coexistirmos e de outras outras espécies que já estiveram pela Terra e desapareceram. Os dinossauros são um exemplo. Como dizia Carl Sagan, “a sobrevivência é exceção; a extinção é a regra”.

E qual o maior perigo que ronda a permanência da espécie humana no globo terrestre nos últimos anos? A possibilidade de uma guerra nuclear torna-se mais iminente de vez em quando, conforme os acirramentos de tensões políticas. Mas, a despeito disso, certamente as mudanças climáticas são o principal risco alardeado pelos cientistas há décadas. Aliás, os cientistas, de certo modo, são herdeiros dos antigos profetas tocando as trombetas do fim do mundo. O físico Marcelo Gleiser, em seu livro O fim do céu e da Terra (2001), nos diz que “o desenvolvimento temático da ciência incorpora tendências da cultura popular e religiosa” (p. 174) e que “O fim da Terra, que, segundo profetizaram textos apocalípticos, seria causado por cataclismos ordenados por deuses ou por Deus, encontrou uma nova expressão na análise científica” (Ibid).

Mas, além da sensação de proximidade com o fim, qual a relação entre o coronavírus e as mudanças climáticas que estão aumentando a temperatura do planeta? Pois cientistas chineses e americanos descobriram, nas geleiras do Tibete, 28 grupos de vírus desconhecidos, congelados há 15 mil anos. Com o derretimento dos gelos glaciais, provocado pelas mudanças climáticas, existe a possibilidade de novos agentes patogênicos serem liberados, trazendo novos riscos para os seres humanos. O trabalho de pesquisa feito no Tibete pode ser estendido para outras geleiras e assim, quem sabe, encontrar novos vírus. 

Um exemplo parecido vem da Rússia. Em 2016, na península de Yamal, uma criança morreu e outras 23 pessoas contraíram antraz, uma doença infecciosa causada pela bactéria Bacillus anthracis. O antraz havia desaparecido da região há quase 80 anos, mas ressurgiu, segundo cientistas, como efeito colateral do degelo do permafrost. O  permafrost é um tipo de solo congelado encontrado no Ártico e rico em metano e matéria orgânica. O episódio 12 da série de TV Cosmos, apresentada pelo astrofísico americano Neil deGrasse Tyson, aborda o problema do permafrost. Tyson caminha pelo litoral de Drew Point, no Alasca. Ele lembra que no final da década de 1950, quando nasceu, aquele solo litorâneo, formado por permafrost, se partia, em média, seis metros por ano. Atualmente ele está sendo corroído em aproximadamente 15 metros por ano. E com isso o litoral local já encolheu em torno de um quilômetro e meio do fim da década de 1950 para cá.

Como se não bastasse o perigo da liberação de vírus e bactérias milenares, o degelo do permafrost libera altas doses de metano na atmosfera, que é um gás 28 vezes mais potente que o dióxido de carbono para o efeito estufa, porque retém mais calor. Quando você descongela o seu congelador, esse degelo começa a exalar um cheiro desagradável, por conta da gordura e resíduos que ficaram acumulados na placa de gelo durante muito tempo, correto? Com o permafrost ocorre algo parecido.

Quanto mais o permafrost derrete, mais libera metano e também dióxido de carbono na atmosfera, fora os vírus e bactérias. E quanto mais esses gases de efeito estufa circulam pela atmosfera, mais o clima da Terra esquenta, o que significa mais derretimento do permafrost e das geleiras em geral. Um sistema de retroalimentação que os cientistas chamam de “mecanismo de feedback positivo”. Quer outro exemplo? O gelo é a superfície mais brilhante da Terra e a água em mar aberto é a mais escura. O gelo, por ser brilhante, reflete a luz solar de volta para o espaço (o que é bom, porque ajuda a manter certo resfriamento da Terra), enquanto o espelho d’água do mar aberto, por ser escuro, absorve a luz solar e fica mais quente. A elevação da temperatura da água derrete ainda mais as geleiras, o que reduz ainda mais a superfície brilhante que reflete o Sol e aumenta a superfície escura da água que o absorve. E por ai vai. 

Política e negacionismo

Para evitar o caos das mudanças climáticas e outros problemas decorrentes, como a proliferação de vírus e bactérias que apresentam riscos ainda incalculáveis, é preciso políticas ambientais que tenham como objetivo frear o aquecimento global. No Brasil, a situação é complicada. O governo e suas principais lideranças adotam uma postura anticientífica e contrária às ações de combate às mudanças climáticas. Bolsonaro já ameaçou retirar o Brasil do Acordo de Paris, por meio do qual 200 países se comprometeram, em 2015, a tentar conter os prejuízos causados pelo aquecimento global e reduzir gases de efeito estufa. Líderes governistas, como Eduardo e Carlos Bolsonaro, já negaram o aquecimento global diversas vezes nas redes sociais e classificam o discurso das mudanças climáticas, que é baseado em amplas evidências científicas, como uma espécie de trama marxista. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é mais um exemplo de negacionista, chamando pejorativamente a política climática de “globalista” e usando termos como “ditadura climática” para classificar ações que têm por objetivo frear a elevação da temperatura da Terra.

Assim como o governo brasileiro tem sido negacionista em relação às mudanças climáticas, Bolsonaro e seus aliados mais próximos também adotaram uma postura negacionista e anticientífica diante do coronavírus. O presidente vem frequentemente criticando o isolamento social proposto por especialistas e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e tem aparecido publicamente descumprindo a quarentena, participando (e causando!) aglomerações. Mas, como destacou em entrevista o biólogo Átila Iamarino, a diferença é que enquanto no caso das mudanças climáticas os efeitos negativos das posturas anticientíficas se darão a longo prazo, com a covid-19 os resultados irão acontecer em um prazo mais curto. 

Como não existe salvação fora da política, a solução para nossos problemas políticos e ambientais é a estruturação de políticas que apresentem soluções adequadas aos problemas, que estejam, de fato, preparadas para responder a altura os desafios, tanto os de curtíssimo prazo, como o novo coronavírus, quanto os de mais longo prazo, como as mudanças climáticas. E olha que os problemas climáticos não estão tão distantes no horizonte. Eles batem a nossa porta e seus efeitos já são dolorosamente sentidos.      

Referências
GLEISER, Marcelo. O fim da Terra e do céu: o apocalipse na ciência e na religião. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Entrevista de Átila Iamarino no programa Roda Viva
https://www.youtube.com/watch?v=s00BzYazxvU

Episódio 12 da série Cosmos (2014) sobre mudanças climáticas e o permafrost
https://vimeo.com/153447904

Vírus encontrados nas geleiras do Tibet
https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/01/24/28-virus-desconhecidos-sao-encontrados-por-cientistas-em-geleiras-no-tibete.ghtml?fbclid=IwAR1Oi4S62J5OOc5A39DjJX2-y0jFjdw0KIt0Af31UYmiQh4cDF5RoQTzoRs

Casos de antraz na Russia por conta do degelo do permafrost
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2016/08/derretimento-de-solo-congelado-expoe-ameaca-de-virus-e-bacterias.html

O negacionismo climático do governo Bolsonaro
https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/sustentabilidade/meio-ambiente/ernesto-araujo-nega-aquecimento-global-em-discurso-nos-eua,66172f007894f76aa6c987a907da6ed0ohrnxqa0.htmlhttps://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-negacionismo-no-poder/

O metano e o aquecimento global
https://cetesb.sp.gov.br/biogas/2016/12/13/emissoes-de-metano-aceleram-aquecimento-global-mais-que-co2/

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