O que assistir durante a
quarentena? Para algumas pessoas, o período de isolamento social tem sido
entediante, com aquela sensação de não saber bem o que fazer com o tempo
disponível (claro que isso não vale para todo mundo, pois há muita gente que
está trabalhando ainda mais). No comando do controle remoto, há aquelas pessoas
que querem se distrair, esquecer um pouco o problema do coronavírus, mas, por
incrível que pareça, muitas não conseguem se desligar da situação e buscam nas
telas um pouco mais do contexto em que estão vivendo. Prova disso é o filme
Epidemia (1995) estar figurando na lista dos 10 mais assistidos da Netflix.
Se você é desses que não se
desligam, buscam mais do mesmo e têm estômago suficiente, recomendo duas obras:
a série documental Pandemia, disponível na Netflix e lançada assertivamente no
início deste ano, e o filme Contágio, de 2011, disponível na HBO GO. É dele que
falaremos. Trata-se de uma obra de ficção, mas que impressiona de tão realista.
Dirigido por Steven Soderbergh (o mesmo de Onze Homens e um Segredo), o filme,
estrelado por Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Jude Law e Laurence Fishburne, foi
redescoberto pelo público e vem sendo chamado de “profético”, tamanha a
semelhança com alguns aspectos da crise provocada pela pandemia de coronavírus.
Assim como Epidemia, Contágio está bombando: o filme se tornou um dos mais
comentados no Letterboxd, rede social focada em cinema, e está na segunda posição
na lista de mais procurados da Warner Bros. Em dezembro, ele estava na modesta
270º posição dessa mesma lista.
O filme merece ser chamado de
profético? Na verdade, cinema e literatura são pródigos em antever situações.
No campo da ciência isso é bem perceptível. Em 1902, nos primórdios da arte
cinematográfica, o diretor Georges Méliès, um dos pais dos efeitos especiais,
lançou Viagem à Lua, baseado no romance Da Terra à Lua, de Júlio Verne, ambos lançados
muito antes de Neil Armstrong pôr os pés em solo lunar, em 1969. A escritora Mary
Shelley, com seu Frankestein, antecipou no século 19 discussões sobre clonagem e
bioética que cresceriam ao longo do século 20. Ao falar sobre o mito do
Frankestein, o pesquisador Jon Turney nos lembra que “não é
convincente a separação que alguns fazem entre o reino da imaginação e o
domínio científico” (2005, p. 105). Isso porque a imaginação não serve somente
para a arte, é preciso algumas doses dela na ciência. E por isso com frequência
a arte irá “prever” feitos e contextos de caráter científicos.
Os acertos de Contágio
se devem muito mais a um roteiro antenado com os nossos tempos e uma boa
consultoria científica[1], incluindo o apoio de epidemiologistas, do que a
algum tipo de misticismo profético. Epidemias não são novidade e, dois anos
antes do filme ser produzido, o mundo havia passado por um surto de H1N1, a
chamada gripe suína. Muitas situações típicas de uma epidemia são bem
caracterizadas em Contágio: a expressão moribunda dos infectados, com sudorese,
tosse e palidez; as formas de contaminação, retratadas por meio de closes em
objetos, em carnes expostas nas feiras e em situações de proximidade entre as
pessoas; o isolamento social, com ruas, igrejas e diversos estabelecimentos
vazios; dentre outros aspectos. Em tempos de coronavírus, tudo fica ainda mais
realista.
O vírus das fake news
Mas, dentre os diversos
acertos de Contágio, o que mais impressiona é a abordagem que o filme faz sobre
o fluxo de informação em tempos de epidemia e seus impactos na sociedade. Os
perigos das notícias falsas, que se proliferam tanto ou mais do que o próprio
vírus, possuem um amplo espaço no filme. Em 2011, a internet e suas boatarias
já não eram mais nenhuma novidade, mas é interessante ver o assunto retratado
de uma forma tão atual antes de termos como “pós-verdade” e “fake news”
tornarem-se tão populares. Logo no início do filme, de dentro de uma redação de
jornal, a fala do jornalista freelancer interpretado por Jude Law é icônica de
nossos tempos: “a mídia impressa está morrendo!”. Daí em diante acompanhamos a
empreitada do personagem como blogueiro.
Parte do problema em
Contágio não está propriamente no vírus, mas na convulsão social causada, em
grande medida, por esse pseudojornalista. É ele o principal responsável por
disseminar que uma substância chamada “forsítia” seria a cura para o vírus.
Imediatamente ocorre uma corrida às farmácias, incluindo invasões e saques, ao
ponto da substância desaparecer das prateleiras. Tudo seguindo a receita das
teorias conspiratórias: a forsítia é a cura, mas a indústria farmacêutica, o
governo e a comunidade médica, todos em conluio, trabalham para omitir
informações e garantir seus interesses escusos. Impossível não relacionar a
forsítia do filme com a cloroquina da vida real, no contexto do covid-19.
O pseudojornalista se
passa por uma espécie de porta-voz de uma verdade escondida, tal e qual o modo
como os conspiracionistas em geral gostam de se sentir. Aqui fica clara a descrença nas
instituições, outra característica marcante de nossos tempos. O estado e suas
instituições públicas, a mídia tradicional (caso dos grandes jornais impressos,
que o jornalista blogueiro disse estarem morrendo) e até a própria ciência passam
a ser sistematicamente desacreditados e desqualificados. Movimentos antivacina
e o terraplanismo estão aí para mostrar isso. Em um momento memorável do filme,
o médico Ellis Cheever (interpretado por Lawrence Fishburne), é confrontado
pelo blogueiro em um programa de TV. O blogueiro insiste na forsítia e, com bom
domínio do debate e eloquência no discurso conspiracionista, joga o médico
contra a parede. Doutor Cheever, que
trabalha nas pesquisas por uma vacina, responde que tipos diferentes de drogas
estão sendo testados, mas, na falta de resultados conclusivos, o ideal é a
manutenção do isolamento social. Parece até que o personagem está falando
diretamente com o presidente Jair Bolsonaro, um entusiasta da cloroquina e
crítico da quarentena.
Entretanto, é Jude Law
quem parece se sair melhor no debate, mesmo sem ter razão. Aqui, contágio
reforça mais um traço dos nossos tempos com relação às tecnologias midiáticas e
à midiatização: a forma se sobrepondo enormemente ao conteúdo. No contexto
atual, técnicas de relações públicas, propaganda, marketing e boas ferramentas
algorítmicas podem convencer a opinião pública de qualquer coisa, ainda que
essa coisa seja frontalmente contrária às evidências científicas. Isso pode fazer
com que certos assuntos que são consensuais ou praticamente consensuais na
comunidade científica pareçam controversos para a opinião pública. Um exemplo é
o aquecimento global antropogênico (ou seja, causado pela ação humana). Para quem
quiser saber mais sobre o assunto, recomendamos o documentário Mercadores da
Dúvida[2], baseado no livro homônimo, que mostra as táticas persuasivas dos
negacionistas climáticos. Uma das principais armas dos propagandistas das
controvérsias é saber explorar uma regra jornalística que é a de ouvir sempre
os dois lados da história. A regra é justa e necessária, diga-se de passagem,
mas o “outroladismo” pode gerar algumas dissonâncias e distorções, dando para
ideias extremamente minoritárias o mesmo espaço na mídia que posições
consensuais com maior corpo de evidências e com fundamentos mais sólidos[3].
Contágio exagera em
alguns traços e dramas da epidemia. Afinal de contas, é cinema e o cinema joga
com a emoção. A rapidez e letalidade do vírus fictício são bem maiores que as
do coronavírus (ainda bem!) e a convulsão social é bem mais intensa (ao menos por
enquanto), mas, em alguns aspectos, é a realidade quem supera a ficção. Embora
o filme mostre de forma brilhante os efeitos nocivos das teorias conspiratórias
aliadas à internet, não há em Contágio grandes autoridades políticas
reproduzindo tais teorias e propondo como cura substâncias sem efeito
comprovado. Já na vida real (cada vez mais surreal), presidentes como Donald
Trump e Jair Bolsonaro defendem o uso da cloroquina em suas declarações públicas.
A substância ainda não tem efeito cientificamente comprovado na cura do
covid-19, por isso é preciso cautela[4]. Isso mostra que, no mundo real, todo esse modus operandi conspiracionista de internet retratado no filme vem aos poucos se fundindo
ao próprio estado e suas instituições. Trump, nos EUA, e o Brexit, na
Grã-Bretanha, são frequentemente apontados como exemplos de êxitos eleitorais imbricados
com o fenômeno da pós-verdade (ou pós-fato), termo que denota circunstâncias
nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do
que apelos à emoção e a crenças pessoais. As novas mídias digitais,
principalmente as redes sociais, têm protagonismo neste cenário perigoso[5].
A eleição de Bolsonaro
não foge dessas características. O êxito de sua campanha à presidência foi
conquistado por conta das redes sociais (principalmente do Whatsapp), a
despeito do pouquíssimo tempo de TV que tinha na propaganda eleitoral oficial[6].
Como se não bastasse a defesa prematura da cloroquina (não necessariamente um
equívoco, mas, no mínimo, uma imprudência), o presidente do Brasil virou uma
espécie de garoto propaganda antiquarentena. Uma coisa é se antecipar à
comunidade científica defendendo uma eficácia ainda não comprovada, a outra é
contrariar deliberadamente essa comunidade, que recomenda o isolamento social
como a melhor forma de prevenção no momento, assim como o doutor Cheever faz em
Contágio. O pseudojornalista interpretado por Jude Law também estava certo em
um ponto: a mídia impressa está mesmo morrendo. O problema é se o que estamos
colocando no lugar é melhor ou pior e quais as transformações sociais decorrentes
dessa substituição. O historiador da ciência David Wootton, autor de Uma breve
história dos fatos na revista History Today, em que discute a visão peculiar de
Trump sobre fatos e verdades, vê com muita ressalva essas transformações:
A internet cria uma
enchente de pontos de vista diferentes e você não consegue diferenciar o certo
do errado, pois todos parecem igualmente convincentes na tela. E acho que, com
isso, a fofoca está sendo transformada em opinião, e fica bem mais difícil
distinguir argumentos bem fundados de preconceito. Acho que a internet está nos
levando de volta a um mundo medieval no qual as histórias se espalham
rapidamente, sejam verdadeiras ou falsas, e fica impossível descobrir de onde
vieram e se são confiáveis (2017).
Referências
TURNEY, Jon. Resposta popular à ciência e à tecnologia:
ficção e o fator frankenstein. In: MASSARANI, Luisa; TURNEY, Jon; MOREIRA,
Ildeu de Castro (Org.). Terra incógnita. A interface entre ciência e público,
Rio de Janeiro: Vieira & Lente: UFRJ, Casa da ciência: FIOCRUZ, 2005. p.
99-114.
WOTTON, David. A internet está nos levando de volta a um
mundo medieval. Consultor Jurídico. 10 jul 2017. Disponível em <
http://www.conjur.com.br/2017-jul-10/milenio-david-wootton-autor-breve-historia-fatos>
Acesso em: 15 ago 2017.
1- Detalhes sobre a consultoria científica do filme, seu
enredo e produção:
2- Link para o documentário Mercadores da Dúvida:
3- Publicação da revista Questão de Ciência, sobre como a
mídia é utilizada na fabricação de controvérsias:
4- Saiba mais sobre a cloroquina e os testes com a
substância:
5- Saiba sobre o fenômeno da pós-verdade e o papel das novas
mídias:
6- Bolsonaro, eleições e redes sociais:
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