terça-feira, 27 de julho de 2021

Rayssa Leal é prata no skate: o fato, as narrativas e o trabalho infantil

 

Os modos como as pessoas espremem os fatos para encaixá-los nas próprias narrativas não é um fenômeno novo, mas é algo que parece cada vez mais distante do razoável. Isso mostra muito de nossa capacidade de concatenação de idéias, muitas vezes juntando coisas que não têm nada a ver umas com as outras.

Fica um pouco pior quando isso parte de figuras públicas com poder nas mãos, A medalha de prata nas Olimpíadas de Tóquio da nossa “fadinha do skate”, Rayssa Leal, de apenas 13 anos, serve como exemplo. É um fato. E como fato, é apropriado pelas narrativas. Serve para todos os gostos. Mesmo a contragosto da lógica.

O deputado estadual paranaense Jorge Brand, mais conhecido como “Goura”, publicou uma foto da comemoração da menina Rayssa com a legenda “Mulher, negra e nordestina no topo do mundo. Esse é o Brasil que queremos”. Embora eu concorde no mérito quanto à defesa da diversidade e democratização das oportunidades, não consigo deixar de ver a forçação de barra e chatice em pegar um pódio como gancho para encaixar essa narrativa. Até porque a menina só tem 13 anos. Onde ele viu uma mulher? 

Não conhecia o Goura. Inicialmente achei que fosse uma página de humor. Dei uma olhada nas outras postagens. Não me pareceu ser de humor. Pouco tempo depois entrei novamente na página, ainda meio incrédulo. Fui além e cliquei no link para o site. Vi que se tratava de um deputado estadual. Fiquei surpreso.

Em seguida, vejo no Linkedin uma colega criticando um post do deputado federal Sóstenes, do Rio de Janeiro. Na publicação o parlamentar escreveu: “As crianças brasileiras de 13 anos não podem trabalhar, mas a skatista Rayssa Leal ganhou a medalha de prata nas Olimpíadas… Ué! É pra pensar… Parabéns a nossa medalhista olímpica! E revisão do Estatuto da Criança e Adolescente já!

Mais uma vez, não acreditei. Poderia ser um print falso espalhado por algum detrator do partamentar. Fui à página oficial de Sóstenes no Facebook para conferir. E, de fato, ele fez essa publicação, que inclusive, de tão absurda, virou notícia [1]. Assim como o post de Goura, a publicação de Sóstenes recebeu muitas críticas.

Ambos os políticos, um de esquerda e outro de direita, espremeram um fato para sustentar uma narrativa prévia. No primeiro caso, um “haha” e um “descansa, militante” seriam suficientes (se fosse apenas um militante, mas é um parlamentar). No segundo, a coisa é um pouco pior. Uma falsa equivalência é escancaradamente usada para se sugerir a redução de direitos trabalhistas, da criança e do adolescente, incluindo expressamente um pedido de “revisão” do ECA. 



Trabalho infantil
Não é um caso isolado. Em 2019, o presidente Bolsonaro disse que trabalhou em uma fazenda aos nove ou dez anos de idade e que isso não o prejudicou em nada. Ele usou seu suposto exemplo para demonstrar simpatia pelo trabalho infantil e disse que não apresentaria um projeto para descriminalizá-lo porque senão seria "massacrado" [2]. Não deixa de ser um balão de ensaio: se não for tão “massacrado” assim, por que não apresentar o tal projeto?

A fala repercutiu em críticas e também em adesões. Pronunciamentos como esse costumam abrir o gargalo para falas semelhantes. Ás vezes, abrir a porteira para falas que, por vergonha e constrangimento, estavam represadas. A jornalista Leda Nagle, no mesmo mês que Bolsonaro, abordou o trabalho infantil da mesma forma romantizada que o presidente, ao afirmar que trabalhou no armazém de seus pais, aos 10 anos de idade [3], desconsiderando que nem todas as crianças terão a suposta vantagem de trabalhar no negócio da própria familia, assim como ela. 

Não parou por aí. Em 2020, Bolsonaro voltaria a defender o trabalho infantil em uma de suas lives: "deixa a molecada trabalhar", disse o presidente. Em sua “argumentação”, ele voltou a fazer uso de uma falsa equivalência, assim como fez em 2019 e assim como Sóstenes fez agora. Bolsonaro disse:  Molecada quer trabalhar, trabalha. Hoje, se está na Cracolândia, ninguém faz nada com o moleque" [4]. 

Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Crianças em situação de vulnerabilidade social e usuárias de drogas precisam de assistência psicossocial e, frequentemente, recebem essa assistência de municípios e governos estaduals. Se não recebem a contento, é preciso reforçar essa assistência em vez de usar a doença e o vício como argumentos para liberar o trabalho infantil. 

Contexto sociopolítico
Sóstenes é um parlamentar que faz parte da base de defesa do governo federal, portanto sua fala, usando a medalha de prata da pequena gigante Rayssa para defender o enfraquecimento do ECA (desconsiderando que a atleta só pôde ir às Olimpíadas justamente porque não precisa trabalhar e pode se dedicar aos treinos) se insere em uma série de posicionamentos de um grupo sociopolítico reacionário, que defende supressão de direitos para facilitar o avanço da exploração do capital sobre a mão de obra. 

Esse mesmo grupo esteve à frente das últimas mudanças determinadas pelas reformas trabalhista e previdenciária. E também está à frente de uma reforma administrativa que avança. Na balança na qual se equilibram patrões e empregados, o grupo põe peso a favor do patronato e contra os trabalhadores. Por isso é importante uma contextualização sociopolítica da fala de Sóstenes.

Devemos também aprender mais sobre raciocínio lógico argumentativo (abaixo, links para textos que apresentam algumas das principais falácias usadas no debate público e podem servir de introdução ao assunto [5]), para evitarmos cair nessas falsas equivalências, como a comparação de um pódio olímpico e o trabalho infantil em geral. Comparação feita motivadamente em defesa do enfraquecimento de direitos, que abre brechas para a exploração infantil. 

Crianças trabalhando, às vezes exaustivamente e de forma análoga à escravidão, são uma realidade mesmo com o Estatuto da Criança e do Adolescente Imagina sem ele. E não há nada de moderno ou “pra frentex” na desregulação de direitos trabalhistas ou das crianças. No século 19, o trabalho infantil era usado em larga escala [6]. Foram necessárias décadas de lutas trabalhistas e um processo civilizatório com um conjunto de valores éticos e morais para criminalizar as práticas de exploração do trabalho de crianças e adolescentes. 

E parabéns para a nossa atleta! Que a Rayssa possa crescer, brincar, treinar, se desenvolver como pessoa e se aperfeiçoar como skatista, para ganhar muitas outras medalhas e representar o Brasil no exterior. Sem o peso do trabalho precoce e do uso político da miséria como pretexto para a descriminalização do trabalho infantil. 


sexta-feira, 16 de julho de 2021

71 anos do Maracanaço e do frango que não existiu: como a gente enxerga na ausência das imagens?*



Nesta sexta-feira completam-se 71 anos do chamado “Maracanaço”, considerado uma das maiores “tragédias” do futebol brasileiro. Seguramente, até 2014, era vista como a pior de todas, mas aí veio o 7 a 1. O Brasil, maior vencedor de Copas do Mundo, não guarda boas lembranças como anfitrião da competição, seja em 1950 ou em 2014.

Muito já foi dito e chorado a respeito daquele fatídico 16 de julho de 1950, em que o Uruguai, de virada, derrotou o Brasil por 2 a 1 em pelo Maracanã lotado [1]. O atacante Ghiggia, aos 34 minutos do segundo tempo, receberia a bola pela ponta direita e daria um chute cruzado balançando as redes de Barbosa, goleiro da seleção brasileira e do Vasco da Gama. Embora reverenciado pela torcida vascaína, o restante do Brasil o elegera como o grande vilão nacional, culpabilizando-o pelo fracasso brasileiro.

Às vésperas da partida, havia muita soberba e prepotência em comemorações antecipadas, por parte de uma nação que apostava na urbanização e industrialização e que buscava se afirmar como moderna internacionalmente. Imprensa e público davam o Brasil como o novo campeão do mundo já antes do jogo [2]. A festa estava pronta, mas tudo foi por água abaixo com o gol de Ghiggia. Essa mesma imprensa e esse mesmo público, outrora eufóricos, após a derrota ressaltavam a “falha” do goleiro que nos tirou a Copa. No popular, “o frango” de Barbosa. 

Mas foi mesmo um frango? Para responder a essa pergunta temos que falar sobre as formas de registro do real através das imagens. Éramos uma sociedade bastante diferente da atual em vários aspectos, e aqui estamos tratando da questão da comunicação e radiotransmissão. As tecnologias de comunicação eram bem menos desenvolvidas do que são hoje. Tínhamos uma imprensa basicamente escrita e sonora, não de imagens. A TV era recém-chegada ao Brasil [3], exatamente naquele ano de 1950, graças à ousadia do barão brasileiro da comunicação da época, Assis Chateaubriand, que introduziu o aparelho no país quase como alguém que introduz uma espécie exótica em um outro ecossistema.

Ninguém tinha aparelhos de TV em casa naquela época. O que ficava no centro da sala era o rádio, e não a televisão, como viria a ser nas décadas seguintes. O videotaipe só se tornaria realidade alguns anos depois [4]. Portanto, em 1950, as transmissões de TV eram precárias, somente ao vivo e assistidas por praticamente nenhum brasileiro. O gol de Ghiggia não teve replay. Tira-teima? Nem sonhando! Nenhum dos lances daquela lendária partida foram reprisados em câmera lenta. E não havia nenhum comentarista para dizer que “a imagem é clara”. 

Porque realmente não havia imagens claras. Não tínhamos muitas câmeras em campo. Até hoje, a imagem em movimento que temos do segundo gol uruguaio foi captada por uma só câmera posicionada atrás do gol de Barbosa [5]. Ela não mostra exatamente um frango, mas um chute certeiro de Ghiggia, que aparentemente poderia até ser defendido por Barbosa, mas não foi, o que não necessariamente significa uma falha. Barbosa explicaria, ao longo de sua vida, que raciocinou conforme o mais previsível, achando que o atacante uruguaio iria cruzar a bola na área, mas Ghiggia, mesmo com pouco ângulo, chutou para a meta. Um lance rápido, de sagacidade do jogador uruguaio, mas não um frango do goleiro brasileiro. 

Era muita emoção e poucas imagens objetivas. Muita soberba, expectativa, clima de já ganhou, para poucas câmeras, pouco registro da realidade. Havia também o racismo, que existe até hoje em um país que ainda carrega a herança escravocrata em vários aspectos, último país da América a abolir a escravidão. 

Numa sociedade como aquela, se o público saísse desolado do estádio dizendo que o goleiro frangou, era isso que iria se propagar. Se a imprensa escrita publicasse no jornal do dia seguinte que a falha era do goleiro, era isso que seria impresso também no imaginário. E assim foi. Surgia então o mito do frango do negro Barbosa. Havia poucas imagens para desmistificar o que o olhar passional do ser humano criara. 

Quando não há imagens ou quando elas não são claras, enxerga-se com o coração, com a emoção, e, muitas vezes, com o preconceito. Longe de, por outro lado, sermos ingênuos com um outro mito, o da objetividade, e com o poder persuasivo das evidências, devemos lembrar que quando alguém está fortemente motivado a enxergar uma coisa, é difícil fazê-lo enxergar outra, mas ainda assim é papel da imprensa, das câmeras e demais recursos midiáticos tecnológicos buscar a captação mais fiel possível dos fatos e do real. 

O mito do frango do Barbosa é mais uma história que ilustra a importância da comunicação, como ela pode fazer diferença por meio de seus avanços tecnológicos e como esses dispositivos (ou a ausência deles) impactam no imaginário, na criação e perpetuação de mitos e lendas. 


O futebol é tão injusto quanto a vida

Já em 2014, ano do 7 a 1, havia uma média de mais de 30 câmeras por jogo [6]. Elas não impediram mais uma “tragédia” futebolística nacional, mas nos fez vê-la pelos mais diversos ângulos e em alta definição. Falando assim, soa masoquista, mas essa riqueza de detalhes é necessária.  E por isso temos a vídeoarbitragem (video assistant referee – VAR), adotada no Campeonato Brasileiro em 2019. Quantas decisões poderiam ser diferentes se o VAR tivesse sido incorporado há mais tempo? 

Hoje em dia, jogadores e comissão técnica precisam ter cuidado com o que dizem em campo (com frequência colocam a mão à frente da boca para se comunicarem sem que haja registro das câmeras). As imagens, associadas à leitura labial, podem ser usadas em decisões da Justiça, em casos de ofensas racistas, por exemplo.   

E claro que isso vai muito além do futebol. Nas atividades policiais por exemplo, uma semana depois da operação ocorrida na comunidade do Jacarezinho, em que 28 pessoas morreram, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou a instalação de microcâmeras em equipamentos de agentes de segurança pública e defesa civil do Rio, para captação e registro de imagens e áudio [7]. A lei foi sancionada pelo governador Cláudio Castro [8]. 

Por conta do alto número de mortos, a operação da Polícia Civil no Jacarezinho foi amplamente discutida, com muitas críticas a um possível excesso policial e, de outro lado, com falas reiterando as mortes como necessárias, em resposta aos ataques sofridos pela polícia. Mas o fato é que não temos imagens evidenciando de uma perspectiva tática e de forma objetiva o que houve no confronto. 

Recentemente adotadas por batalhões da PM de São Paulo, o uso das câmeras nas fardas fizeram os números da letalidade policial despencarem. O coronel Robson Duque explica que a redução da letalidade também acontece porque o criminoso sabe que está sendo gravado e isso não é vantajoso para ele. Assim, reduz-se também as ações violentas contra a polícia [9]. 

A comentarista esportiva Milly Lacombe certa vez, em uma dessas partidas com virada inacreditável, disse que “O futebol pode ser tão injusto quanto a vida, por isso ele é tão apaixonante”. Então que as câmeras, imagens e sons sejam usados para reduzir as injustiças, no futebol e no cotidiano, inclusive aquelas praticadas contra negros e pobres, como um dia foi o goleiro Barbosa.


* Este artigo é dedicado ao Clube de Regatas Vasco da Gama, que embora não seja meu time, teve papel importante contra o racismo no futebol. E ao amigo de pesquisa e conversa fora Adler Mendes, vascaíno roxo. 


Referências:


[1] Documentários muito bons sobre o Maracanaço. Emocionam:


https://www.youtube.com/watch?v=eCNjLTD_YlQ


https://www.youtube.com/watch?v=t1V7Fd_cETE


[2] Expectativa brasileira sobre o jogo: 

https://www.youtube.com/watch?v=RaCOaxSsGE0


[3] Chegada da TV no Brasil: 

http://www.tudosobretv.com.br/histortv/tv50.htm


[4] História do videotape: 

https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/historia-do-vt


[5] Gol de Ghiggia: 

https://www.youtube.com/watch?v=thttvWisKbk


[6] Câmeras na Copa de 2014:

https://oglobo.globo.com/esportes/os-numeros-impressionantes-da-copa-do-mundo-11670702


[7] Alerj aprova instalação de câmeras em equipamentos policiais:

https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/alerj-aprova-instalacao-de-cameras-em-equipamentos-de-policiais-12052021


[8] Lei é sancionada: 

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/06/07/lei-para-que-uniforme-policial-no-rj-tenha-camera-e-sancionada-prazo-para-instalacao-e-vetado.ghtml


[9] Uso de câmeras pela PM de São Paulo:

https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/ultimas/camera-na-farda-numero-de-mortes-por-policiais-cai-em-sao-paulo-16359798




quarta-feira, 14 de julho de 2021

14 de julho - Dia da Liberdade de Pensamento

 

Hoje é o Dia da Liberdade de Pensamento. A data é inspirada na queda da Bastilha, ocorrida no dia 14 de julho de 1789, um evento central para a Revolução Francesa [1], que depôs o absolutismo monárquico e consolidou o pensamento iluminista [2], tão importante para o desenvolvimento de instituições democráticas como a imprensa e a ciência. Com as mudanças provocadas pela Revolução Francesa, as certezas teocráticas e os argumentos de autoridade cederiam espaço para o pensamento cético e a dúvida metódica, fundamentais para a investigação racional da realidade, para o conhecimento do mundo. 

Por isso, na data de hoje, compartilho esta que é uma das melhores charges que já vi, que consegue captar o espírito da imprensa e também da ciência. Uma obra-prima necessária nos dias atuais, em que esses e outros pilares da modernidade vêm sendo tão atacados. “Em um mundo de certezas, somente as dúvidas te darão asas”, diz Carlos Ruas, autor da ilustração genial, que chama a atenção para o papel e necessidade do ceticismo em um mundo onde tantos estão tão cheios de certeza e disparando suas exclamações. A internet e os algorítimos parecem reforçar essas certezas através de um tipo de viés cognitivo conhecido como “viés de confirmação” [3].   

À charge e à frase de Ruas, tomo a liberdade de acrescentar outra frase do também genial Carl Sagan: “Tornamos nosso mundo significativo pela coragem de nossas perguntas e pela profundidade de nossas respostas.” Ou, ainda segundo Sagan, “Se nós não estamos aptos a fazer perguntas céticas para interrogar aqueles que nos dizem que algo é verdade e sermos céticos quanto aqueles que são autoridade, então estamos à mercê do próximo charlatão político ou religioso que aparecer”. São frases que exaltam a centralidade das perguntas no pensamento crítico, a relevância do questionamento.  

Então, seja cético. Cheque os dados. Pergunte as fontes. Ponha à prova suas próprias convicções. Questione com base em que tal afirmação é feita. E lembre-se: você não precisa ter certeza de tudo. 


Referências:

[1] Sobre a queda da Bastilha e a Revolução Francesa:

https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-foi-queda-bastilha.htm


[2] Sobre o Iluminismo:

https://www.politize.com.br/iluminismo/


[3] Sobre viés de confirmação:

https://universoracionalista.org/vies-de-confirmacao/


1 ano sem Maurício Tuffani: um gigante da divulgação científica, para além das redes sociais

No último dia 31 de maio de 2022, um ano se completou da morte do jornalista e divulgador científico Maurício Tuffani. Lembro-me bem da dat...