Tenho como um dos meus filtros de internet pesquisar o currículo de uma personalidade quando ela se destaca como formadora de opinião. Vale Lattes, Linkedin, Vitae. Vejo a formação, a experiência profissional, o que mais eu puder. Já fui criticado por isso, mas no terreno arenoso da internet, onde cada um diz qualquer coisa, acho válido. Na sociedade de espetacularização midiática em que vivemos, as estratégias de propaganda, marketing e relações públicas estão a todo o momento atropelando o conhecimento e se sobrepondo a ele. É a forma frequentemente esmagando o conteúdo. É a velocidade superando a reflexão.
Dito isso, quero usar o exemplo recente do Átila Iamarino, que fez um vídeo para seu canal Nerdologia comparando o funcionamento do mercado financeiro a um formigueiro (vídeo este declaradamente patrocinado por uma corretora)[1]. É o tipo de analogia com carga ideológica que dá um verniz de fenômeno da natureza a um construto social, "biologiza" o capitalismo fazendo-o parecer natural, inerente ao ser humano e, logo, o melhor (ou mesmo o único) caminho possível.
Sobre esse tipo de analogia falha entre natureza e fenômenos socioeconômicos e políticos, recomento o pequeno livro "O que é Darwinismo"[2], do biólogo Nélio Marco. Nesta obra o autor mostra como as comparações entre natureza e funcionamento do capitalismo já permeavam o trabalho do naturalista Charles Darwin. A idéia de competição, marcante na economia de mercado e também presente na selva (quem nunca ouviu a expressão “capitalismo selvagem”?). O livro do biólogo desconstrói essas analogias e mostra o quanto elas estão impregnadas de ideologia, o quanto cientistas como o próprio Darwin tendem a interpretar a natureza e as coisas a partir dos pressupostos do mundo em que vivem, inclusive os pressupostos econômicos. A visão da natureza como uma analogia da competição capitalista desconsidera, por exemplo, inúmeros exemplos de mutualismo e de cooperação entre animais de uma mesma espécie. Marco cita como um dos exemplos o “trabalho conjunto” feito por zebras movimentando-se em círculos e supostamente usando suas listras para confundir os predadores.
Há implicitamente um argumento de autoridade no vídeo do Nerdologia: Átila, um biólogo respeitável, lança mão de seu prestígio para ir além de sua área. Assim sendo, é um argumento de autoridade bem truncado, pois o fato de ele ser um grande biólogo não faz dele um economista ou cientista social.
Isso também não significa que Átila e seus seguidores sejam estúpidos, como agora, aborrecida com o vídeo, quer fazer crer os críticos mais mordazes do vídeo (pessoas politicamente à esquerda, incomodadas com o modo como o livre mercado foi retratado). Pelo contrário: no contexto pandêmico atual, Átila, youtubers e demais produtores de conteúdo semelhante (de popularização da ciência) são aliados importantes contra o negacionismo científico. E não adianta muito apenas atacar sem explicar por A mais B, com algum didatismo, onde o vídeo está errado.
Por isso volto à importância de se ter em mente a formação e a vivência de alguma celebridade de internet para além de suas atuações no espaço virtual. Átila é biólogo, e a chance de um especialista cometer algum equívoco ou distorção aumenta muito na medida em que ele desliza para outras áreas distantes da sua. Isso vale para todos, pois ninguém é onisciente. No caso do Átila, mais vale isolar o vídeo em questão do restante de seu trabalho (a meu ver, muito bom!), explicar os simplismos e erros do vídeo específico e valorizar os acertos do conjunto da obra.
Ninguém sabe tudo e acho importante as pessoas se informarem que o Olavo de Carvalho não é filósofo, que o Leandro Narloch não é historiador, que a Gabriela Pugliese não é nutricionista ou professora de educação física (ela é formada em desenho industrial). Vale a pena levar certas informações em conta para se estabelecer o quanto de valor se dá àqueles que ajudam a formar nossa opinião. É um filtro que está longe de ser infalível, mas que acho válido, que uso e recomendo. E este texto, como já se deve ter ficado claro, não é uma crítica ao trabalho de um youtuber, mas um exercício de aprimoramento da literacia midiática[3] valendo-se de um exemplo concreto. A literacia midiática vai se elaborando e reelaborando conforme a mídia se transforma.
Referência:
[1] Vídeo “O livre mercado é um computador”, de Átila Iamarino do canal Nerdologia:
[2] MARCO, Nélio. O Que é Darwinismo? São Paulo: Brasiliense, 1987.
[3] Entendendo o que é Literacia Midiática:
Nenhum comentário:
Postar um comentário