
Lançado neste ano pela Netflix, o documentário O Dilema das rede (The Social Dilemma), dirigido por Jeff Orlowski, tem dado o que falar ao tratar sobre estratégias de manipulação das mídias digitais e seus efeitos na sociedade. Aqueles que não curtiram têm reclamado principalmente do "gosto duvidoso" da parte dramatizada e do tom apelativo do filme; os que gostaram ressaltam, por exemplo, a riqueza e abrangência das informações e o quanto a combinação entre informação e recursos dramáticos tornam a produção mais palatável [1].
O novo filme da plataforma de streaming se junta a outros (documentais e de ficção), como Privacidade hackeada e Rede de ódio, que chamam a atenção para os perigos das redes sociais e seus algoritmos. Mais O dilema das redes tem alguns diferenciais. Um deles são os depoimentos dos próprios tecnólogos de gigantes da tecnologia, como Facebook e Google, tecendo críticas sobre as ferramentas que ajudaram a criar. Um momento mea culpa com um toque do mito de Frankestein: "criadores perplexos com o quanto a criatura fugiu do controle."
Um outro diferencial está em não se ater somente à política, dando um bom espaço para questões ligadas aos costumes e seus aspectos psicológicos. O filme fala sobre vício digital/tecnológico e os impactos das novas mídias na autoestima. Nesses pontos, as cenas dramatizadas funcionam para dar o recado, por mais apelativas e pueris que possam parecer. Uma família mal conversa durante a refeição, pois todos estão compenetrados em seus próprios aparelhos celulares. A mãe propõe um desafio: deixar os celulares em um vaso fechado por um tempo. A menina adolescente não aguenta e, pouco depois, quebra o vaso para pegar seu aparelho. As cenas são mescladas a dados sobre o aumento do tempo médio em que ficamos conectados e sobre estratégias das redes para ganharem nossa atenção e nosso tempo de navegação [2] [3] [4].
Ao tratar dos efeitos da rede na autoestima, O dilema das redes traz sequências que me soaram sensíveis e humanizadas, o que é um diferencial positivo. A mesma menina que quebra o vaso para pegar seu celular dedica boa parte de seu tempo ensaiando selfies e testando sua popularidade ao postar suas próprias fotos. Isso é o que eu chamo de ditadura dos likes e da objetividade. Talvez os mais jovens, aqueles que nasceram e cresceram em meio às redes sociais, não entendam o que estou dizendo, mas houve um tempo em que ter um feedback sobre o quanto se é feio ou bonito, o quanto aquela pessoa gosta de você e sobre a própria popularidade não era tão óbvio como é hoje. Claro que nunca foi algo totalmente subjetivo e claro que sempre foi possível mensurar a reação de terceiros, mas havia algum espaço para a subjetividade: será que ele ou ela sente algo por mim? Será que tenho alguma chance? Em um tempo não muito remoto, de maior contato presencial – ou pelo menos de menor contato virtual – olhares e tons de voz eram indicativos importantes para responder a essas perguntas.
Hoje, com a profusão de redes sociais, cada uma com suas características específicas, o feedback sobre a popularidade ou grau de atração é diariamente alimentado e atualizado. Tudo é muito bem quantificado, de forma esmagadoramente objetiva, praticamente sem espaço para ilusão ou autoengano, demolindo a autoestima de uns, inflando o ego de outros. As métricas são várias e se somam: a quantidade de likes nas fotos do Instagram, o teor dos comentários (isso quando eles existem) nas postagens no Facebook, o tempo levado para se receber a resposta à mensagem que enviamos no Whatsapp após ela ser visualizada (se for visualizada, se for respondida), a quantidade de interação em geral, a não interação...
Nunca foi tão fácil termos retorno sobre nós mesmos, sabermos o que os outros pensam do mundo e de nós. As novas mídias possibilitaram algo parecido com a telepatia (claro que isso depende muito do quanto cada pessoa expõe os próprios pensamentos e visão de mundo), algum tipo de telepatia digital. Aplicativos de relacionamentos, como o Tinder, encurtam o tempo que gastamos com um potencial parceiro. É que dependendo das ideias e opiniões do pretendente, pulamos fora o quanto antes. Quem nunca? Em alguns aspectos, a objetividade pode ter suas vantagens. Talvez na otimização do tempo para algumas coisas.
Mas a objetividade das redes e a ditadura dos likes têm um preço. O dilema das redes aborda a relação entre as novas mídias e a saúde mental e chama a atenção para o aumento alarmante de suicídios entre jovens. Há estudos que apontam que o uso excessivo das redes pode causar depressão e ansiedade, doenças que se não forem tratadas agravam pensamentos negativos e suicidas [5] [6].
Retomando a ideia de telepatia digital, finalizo este texto com um pensamento que me era recorrente nos tempos de adolescente, aqueles tempos um pouco mais analógicos e não tão remotos: "se você pudesse escolher um poder mutante, qual seria?" Eu era um fã de X-men e de quadrinhos em geral e, dentre os possíveis poderes que eu gostaria de possuir estava a telepatia. A principal razão era óbvia: saber o que pensavam de mim, quais sentimentos nutriam ao meu respeito e, a partir disso, quais possibilidades eu tinha. Hoje isso me parece menos necessário e até pouco salutar. Saber o que pensam sobre nós e sobre o mundo pode se tornar uma experiência complicada. A objetividade e o excesso de transparência cobram um custo alto. Não à toa personagens como o Professor Xavier e Jean Gray são meio atormentados.
Referências:
[1] "O Dilema das Redes" usa fórmula apelativa para agradar ao público jovem:
[2] “O Dilema das Redes”: por que assistir ao novo documentário da Netflix
https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/dilema-das-redes-por-que-assistir-documentario-netflix/
[3] Os 5 segredos dos donos de redes sociais para viciar e manipular, segundo o ‘Dilema das Redes’
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-54274664
[4] 5 lições de "O Dilema das Redes", doc que mostra o vício nas redes sociais:
[5] A influência das redes sociais nos casos de suicídio entre jovens e adolescentes brasileiros e o seu aumento durante a pandemia:
[6] O risco de depressão e ansiedade com o mau uso das redes sociais:
https://www.selecoes.com.br/saude/o-risco-de-depressao-e-ansiedade-com-o-mau-uso-das-redes-sociais/
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