quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Marcelo Adnet e a crítica à "fala acadêmica da esquerda"

 



O humorista Marcelo Adnet foi o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura, na última segunda-feira (17/08)[1]. Considerando-se de esquerda e progressista, Adnet ainda assim fez críticas ao espectro político do qual diz fazer parte, chamando a atenção para o quanto o "discurso acadêmico" de grande parte da esquerda a afasta da população. Por outro lado, a direita governista, ou seja, a direita bolsonarista, possui, ainda segundo ele, estratégias de comunicação mais diretas e simples, que colam mais fácil com as massas.


– O lado governista tem uma forma de comunicação muito breve: um meme, uma frase, um "chora mais"(...). Enquanto a esquerda é muito mais psicologizada, foucaultiana (...), e todo esse discurso acadêmico da esquerda, que eu tenho também, acaba afastando a maioria da população, porque ele não comunica. Ele é chato, velho e pesado, disse Adnet.


Primeiramente, já virou uma espécie de lugar-comum na política brasileira criticar algum político ou grupo político chamando-o de "acadêmico" ou "academicista". É tiro e queda. Virou crítica mesmo. Motivo de descrédito e até vergonha. Por mais que existam fundamentos pertinentes e construtividade nesse tipo de crítica, não dá para negar que ela é permeada também pelo anti-intelectualismo e antiacademicismo nossos de cada dia. Gosto mais do termo "antiacademicismo", pois mostra o quanto o anti-intelectualismo já se converteu, sociopoliticamente, em aversão às instituições produtoras de conhecimento (universidades e institutos de pesquisa). Sem contar que antiacademicismo é menos subjetivo que anti-intelectualismo, pois há muita gente que se vê como intelectual aparentemente sem ser. Esse provavelmente é o caso de Olavo de Carvalho. Para ele, não existem intelectuais de esquerda ao seu nível[2]. Autoestima é tudo!


Vale destacar que, apesar da crítica ao "academicismo de esquerda", nunca houve na história política brasileira um partido no qual acadêmicos tenham de fato tido hegemonia quantitativa, no poder decisório como dirigentes e nas escolhas dos representantes políticos para candidaturas e cargos na gestão pública. Há ainda, neste tipo de crítica, uma oposição equivocada entre prática e reflexão, entre fazer as coisas (ainda que essas coisas sejam irrelevantes ou equivocadas) e pensar sobre elas. 


Adnet é um excelente humorista. Um dos melhores da TV brasileira, sem dúvida. Com seu talento e criatividade, ele tem abordado temas políticos e satirizado questões que merecem o escárnio. Nem precisava dizer, como disse no programa, que tem uma visão de "esquerda e progressista", pois isso é, em grande medida, perceptível em seu trabalho. Mas foi bom que tenha dito, pois mostra que o pensamento anti-intelectual e antiacadêmico permeia a direita e também a esquerda. Sua crítica sobre a "fala acadêmica" da esquerda é pertinente e foi feita de forma construtiva. Mas foca muito na comunicação e pouco na ideologia e na política propriamente dita. Isso significa dizer que ela foca muito forma e pouco no conteúdo.


Explico: o problema não é só como se diz, mas o que se diz. Estratégias de comunicação política são fundamentais para candidatos, políticos, partidos, governos, ONGs, movimentos sociais etc. Um "chora mais" aqui, uma hashtag ali, um meme, podem, sim, fazer a diferença nesta nova esfera pública que são as redes sociais, onde, para o mal e para o bem, grande parte do debate político é travado. Mas, somadas a essas questões de forma, de estratégias de comunicação e marketing político, há o conteúdo: algumas ideias políticas são mais complexas que outras, portanto a simplificação dessas ideias será naturalmente mais difícil. Como fazer? Essa é a questão!


Bolsonaro é um catalizador de senso comum. Portanto o bolsonarismo surfa em uma onda que já existe. E já se formava antes mesmo das famigeradas manifestações de 2013. A tarefa da esquerda é desconstruir essa onda ou criar uma onda nova. Ou seja, ela é naturalmente mais difícil. Catalizar senso comum, reprocessá-lo e devolvê-lo às massas em forma de meme e texto raso é mais simples. Exemplos: é mais fácil dizer que bandido bom é bandido morto do que apontar as raízes sociais da violência, demonstrando sua relação com a pobreza, com a falta de oportunidades e de acesso à educação, evidenciando os aspectos sociológicos para além dos psicológicos e morais do criminoso; é mais fácil defender castração química de estuprador do que denunciar o machismo estrutural e a cultura de estupro; é mais fácil dizer que a riqueza é fruto do trabalho e do mérito individual do que explicar como funciona o capitalismo; é mais fácil dizer para as pessoas pobres que a vida delas é ruim porque os políticos roubam (recorrendo às imagens estereotipadas de dólares na cueca ou saindo pelas bordas da pasta de couro) do que falar sobre os modos como o estado é capturado pelos interesses privados para que esse mesmo estado funcione segundo os interesses do rentismo e das elites, que precisam da pobreza para que haja mão de obra barata a serviço de seus negócios. Aliás, este último tôpico leva invariavelmente a outros, como luta de classes e mais-valia. Para o bolsonarismo (e boa parte da direita), é melhor ficar só na corrupção e nos políticos corruptos.


Aliás, por que o tema "corrupção" tem um espaço tão amplo no debate político das massas? Uma das respostas é porque a corrupção é realmente um grande problema, mas é também porque discutir política pelo enfoque da corrupção é uma das formas mais fáceis de se discutir e pensar a política. Se você diz que Fulano roubou e Beltrano não roubou, a dona de casa com pouca instrução, mas de bom coração e valores morais, compreende rapidamente que Fulano está errado e Beltrano, não; que Fulano merece punição, enquanto Beltrano pode ser uma esperança. Não à toa o combate à corrupção foi uma das principais estratégias de marketing político da chapa vencedora das últimas eleições. É um mote fácil. O lavajatismo somou forças a esse marketing anticorrupção no reducionismo do debate político-eleitoral de 2018, sendo amplamente usado pelo bolsonarismo e pela direita (aqui não me refiro à operação Lava Jato em seus aspectos jurídicos, mas ao lavajatismo, entendido como desdobramentos político, eleitoral e discursivo da Lava Jato). 


Cabe ressaltar que as áreas acadêmicas mais afeitas ao estudo da política (como ciência política, sociologia, história...) possuem uma epistemologia desconstrutiva, justamente no sentido ideologicamente contra-hegemônico. Ou, para falar de uma forma mais popular: normalmente elas desconstroem o senso comum em vez de se valerem dele; frequentemente elas nos mostram que coisas que vemos como naturais não são tão naturais assim. O  cientista político Luis Felipe Miguel, ao abordar o suposto partidarismo à esquerda nessas áreas, explica que elas nasceram “de um esforço de desnaturalização do mundo social, o que leva à contestação das hierarquias e desigualdades. É o oposto do projeto da direita”[3]. Para o pesquisador, isso explicaria a predominância do pensamento de esquerda nesse segmento.  


Embora assertivo em certa medida, Adnet preferiu focar na forma, na comunicação. "Os governistas foram muito competentes nessa guerra de comunicação e semiótica", disse ele. Pois é, Adnet, mas a questão não é só essa. Ela envolve o debate político nas desconstruções do senso comum; envolve refletir sobre questões complexas que dificilmente serão solucionadas com ideias simples; envolve mostrar ao eleitorado que todos nós devemos desconfiar das soluções fáceis. 


Em minha atuação na área da comunicação pública/governamental, trabalhei com muitos políticos e gestores públicos que tinham a percepção de que estavam fazendo um excelente trabalho (alguns até estavam mesmo), mas que seus governos colhiam poucos frutos dessas ações por conta de falhas e ineficiências da comunicação. Acontece que não podemor resumir todos os problemas a problemas de comunicação ou marketing. Existem plataformas políticas mais complexas que outras; existem aquelas que são menos vistosas, ainda que muito importantes; existem aquelas que são mesmo antipáticas, ainda que necessárias (por exemplo, desapropriações em áreas de risco. Já fiz parte da comunicação de gestão que teve que tomar essa atitude. E claro que isso gera um desgaste político). 


No fundo, a comuncação política se assemelha, em alguns aspectos, à advocacia: não existe causa ganha! E, em algumas causas, devido às circunstâncias – o juiz, o material probatório –  o advogado de defesa terá muito mais dificuldade de obter êxito para o seu cliente. Gosto da analogia entre advogados e profissionais da comunicação; entre procuradorias e setores de comunicação de órgãos públicos, de partidos e de políticos: a mídia é um tipo de tribunal e tem seus modos de julgamento.   


Para Adnet, "Há uma classe política que, com a mudança da comunicação para a internet, não está investindo em ações políticas, mas está investindo em espetacularizações". Concordo. Como transpor certos ideários e suas plataformas políticas para a linguagem das novas mídias sociais é um desafio para políticos, partidos e instituições. E quanto mais complexas e contra-hegemônicas forem essas ideias políticas, maior o desafio. Na área da comunicação, isso é algo que guarda alguma semelhança com a divulgação científica: traduzir conhecimentos complexos de uma forma mais leve, fácil e cotidiana. As críticas à esquerda são pertinentes, mas elas devem vir acompanhadas do entendimento de que o desafio deste espectro político é maior do que o de seus adversários. 



Referências:

[1] "O discurso acadêmico da esquerda acaba afastando a população", comenta Marcelo Adnet: https://www.youtube.com/watch?v=AXUiH7ao6G4


[2] Olavo de Carvalho diz que não existem intelectuais da esquerda a seu nível: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/guru-de-bolsonaro-diz-que-nao-existem-intelectuais-da-esquerda-a-seu-nivel.shtml


[3] "Liberdades em disputa", texto de Luiz Felipe Miguel: https://grupo-demode.tumblr.com/post/148975395702/liberdades-em-disputa?fbclid=IwAR25F7UYhCtdsvZi-OpA4Fq94lJiIxeLkM3M18QIlORXL_5m8JuIO7t7VSk


 

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