Nesta semana o Brasil ultrapassou 9 mil mortes causadas pelo novo coronavírus, tornando-se o oitavo país do mundo com maior número de casos da covid-19 e o sexto em número de óbitos. Os dados podem ser ainda mais graves se levarmos em conta o problema da subnotificação devido à falta de testagem. No momento, os três países com maior número de mortos – Estados Unidos, Reino Unido e Itália – possuem algo em comum: todos têm governos de direita que abraçaram o negacionismo científico, negando os impactos do coronavírus até que os números explodissem.
A postura dos líderes vem sendo importante na estratégia de prevenção. Enquanto alguns têm se destacado positivamente na prevenção à pandemia, caso da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, e da chanceler da Alemanha, Ângela Merkel, outros, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, vêm recebendo críticas constantes da imprensa mundial [1]. Não se trata apenas do modo como esses líderes têm gerido a crise, mas do quanto são capazes de influenciar negativamente as sociedades das quais estão à frente com suas declarações e atitudes. Juntamente com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, Trump e Bolsonaro figuram entre os três líderes mundiais mais populares nas redes sociais, o que é um indicativo do quanto esses chefes de estado são formadores de opinião [2].
Trump e o desinfetante
Trump desdenhou inicialmente da covid-19, foi reticente quanto à necessidade do isolamento social e, com frequência, politiza a pandemia chamando o coronavírus de “vírus chinês” [3]. Na medida em que os casos explodiram, reviu sua posição e passou a defender o isolamento. Entretanto, sua postura tem sido de altos e baixos. Há duas semanas, o presidente americano fez uma declaração sugerindo que profissionais de saúde poderiam testar injetar algum material desinfetante no organismo dos pacientes. Afinal, já que o desinfetante mata o vírus em diversas superfícies externas, por que não mataria dentro do corpo de alguém?
Logo em seguida à declaração, a cidade de Nova Iorque registrou um aumento no número de casos de intoxicação por desinfetante, segundo informações da rede americana NBC. O centro de controle de envenenamento da cidade recebeu 30 chamadas relacionadas à ingestão do produto nas 18 horas seguintes à sugestão do presidente, mais que o dobro do mesmo período no ano anterior, quando apenas 13 casos foram registrados [4]. Após sua declaração, Trump defendeu-se dizendo que estava sendo sarcástico.
Pode ser que o aumento do número de casos de intoxicação seja apenas coincidência ou oscilação normal? Sim. Pode ser que Trump estivesse, de fato, sendo irônico ou sarcástico? Talvez. Mas o fato é que o uso de ironias e sarcasmos não costuma ser apropriado para líderes políticos, já que esse tipo de linguagem frequentemente gera dúbias interpretações e maior dificuldade de compreensão, confundindo a opinião pública. Entretanto, alguns especialistas em política e em linguística destacam que líderes como Trump se valem propositalmente desse tipo de linguagem imprecisa, uma vez que a ironia não se compromete com a verdade. Sendo assim, essa linguagem escorregadia dá margem para que seu emissor deslize de um lado para o outro na medida em que é confrontado ou desmentido.
Quem explica esse tipo de uso da linguagem na política pela direita americana é a jornalista Michiko Kakutani, autora do livro A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Ela explica que o presidente americano levou a linguagem e o modus operandi das redes sociais para os pronunciamentos oficiais institucionais, mais especificamente os da Casa Branca. Trump, conforme diz Kakutani, age como um troll, usa a ironia e os memes como arma.
“Os comentários mais chocantes de cunho racista, sexista e perversamente cruéis vêm das redes socias (muitas vezes acompanhados de uma piscadela ou de um sorriso de sarcasmo). Quando repreendidos, os autores frequentemente respondem que estavam apenas brincando – do mesmo jeito que os assessores da Casa Branca dizem que Trump estava apenas brincando ou que foi mal interpretado quando faz comentários ofensivos.” [5]
Bolsonaro influencia redução do isolamento, diz estudo
No Brasil, a influência de Bolsonaro tem sido sentida de forma ainda mais dramática. Diferentemente de Trump, Bolsonaro tem se mantido firme contra o isolamento social e, mesmo depois da explosão de casos confirmados e de óbitos, o presidente brasileiro foi incapaz de rever sua posição. Inicialmente, chegou a chamar a covid-19 de “Gripezinha” e “resfriadinho”, acusando a imprensa de fazer “histeria”. Bolsonaro adotou uma narrativa segundo a qual existe um conflito entre a saúde e a economia, de modo que fazer isolamento social – a melhor medida segundo cientistas e a Organização Mundial de Saúde (OMS) – seria prejudicial para a economia do país, destruindo empresas, gerando perda de empregos e provocando mais danos do que a pandemia em si.
Desde a chegada do vírus ao Brasil, Bolsonaro tem comprado uma briga com governadores e prefeitos brasileiros, que em grande parte optaram pelos estudos técnicos que apontam para a necessidade do isolamento social e da quarentena, ou mesmo do lockdown, em casos mais graves. O presidente frequentemente é visto em aglomerações, cumprimentando pessoas, contrariando as orientações de prevenção. Nesta semana, ele juntou um grupo de empresários e andou pelo Planalto até o STF para advogar em defesa da abertura do comércio e da retomada das atividades econômicas, mesmo com a explosão de casos confirmados e mortes. Em suma, diariamente Bolsonaro age como garoto-propaganda contra o isolamento.
Uma pesquisa publicada na última semana mostra que o desrespeito ao isolamento social foi maior em áreas onde Jair Bolsonaro tem mais eleitores [6]. A análise foi feita por meio de cruzamento de dados de localização geográfica de 60 milhões de aparelhos celulares e de informações eleitorais dos votos que o presidente recebeu na eleição presidencial em 2018. A pesquisa é um forte indicativo de que o trabalho de Bolsonaro contra as medidas protetivas, ou melhor, seu desserviço contra o isolamento, lamentavelmente teve algum efeito.
O artigo, assinado por dois pesquisadores brasileiros e um argentino, está disponível na internet, em inglês, com o título "More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic" (Mais do que palavras: discurso dos líderes e comportamento arriscado durante a pandemia, em tradução livre).
Os pesquisadores separaram as regiões onde Bolsonaro é popular e impopular de acordo com a votação de 2018. Locais em que o presidente teve mais de 50% dos votos, a exemplo de cidades do Sul e Centro-Oeste, Sudeste e Norte, foram definidos como de apoiadores. Já as regiões onde Bolsonaro foi menos votado, como o nordeste, foram consideradas de não apoiadores. O resultado obtido mostra que após Bolsonaro pronunciar-se publicamente, de forma enfática, minimizando os riscos do coronavirus e desaconselhando o isolamento, as medidas de distanciamento social dos cidadãos em localidades pró-governo diminuíram em relação aos lugares em que o apoio ao presidente é mais fraco. Quem assina o trabalho são os pesquisadores Daniel da Mata, Ph.D em economia pela Universidade de Cambridge, Nicolás Ajzenman, professor da Escola de Economia da Fundação Getúlio Cargas (FGV) e mestre em administração pública em Harvard, e Tiago Cavalcanti, professor da Universidade de Cambridge. Os autores pretendem concluir o levantamento e publicar o material até o final do ano.
Por conta dessa postura presidencial e do frequente embate e desencontro entre, de um lado, Bolsonaro, e, de outro, governadores e prefeitos, o isolamento social no Brasil até o momento não foi feito com a intensidade e seriedade que deveria ter. Frequentemente houve dias em que ele não chegou a 50%, mesmo em cidades com altas taxas de infectados e mortos pelo coronavírus, como São Paulo. O ideal, segundo especialistas, é um índice acima dos 70%.
Saúde ou economia? Uma lembrança da Segunda Guerra Mundial
O conflito entre saúde e economia, tônica da narrativa de Bolsonaro, entretanto, não colou com a maioria da população e nem com especialistas, tanto das áreas biomédicas quanto da economia. De modo geral, o entendimento é de que não há como dissociar uma coisa da outra e, caso seja preciso priorizar alguma delas, a prioridade será sempre a saúde, ou melhor, a vida [9].
O fato é que invariavelmente a economia será afetada por uma pandemia desta proporção, o que já está ocorrendo. Sendo assim, o jeito é preservar vidas, para que o estrago não seja ainda maior. Além disso, como disse em entrevista o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, “a economia a gente recupera; as vidas, não”. Witzel contraiu coronavírus e foi um dos governadores que lideraram o embate contra o governo Bolsonaro, juntamente com João Dória (SP) e Ronaldo Caiado (GO).
O jornalista e analista econômico Carlos Alberto Sardenberg, durante uma de suas lives na Globo News, ilustrou muito bem o problema ao lembrar um fato histórico: o Acordo de Munique, uma fracassada tentativa de paz pouco antes de se iniciar a Segunda Guerra Mundial. Em 1938, o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, como parte de sua política de apaziguamento, assina em Munique um pacto com Hitler e Mussolini. O documento entregava os Sudetos da República Checa desde que esta fosse a última reivindicação dos nazistas, o que selaria a paz. Chamberlain volta exitoso para a Inglaterra, balançando o documento em suas mãos para o público.
Winston Churchill, sabedor de que aquilo não seria suficiente para satisfazer a sede de poder de Hitler e bastante crítico da política de apaziguamento que dominava o Reino Unido, diz sobre Chamberlain, como nos lembrou em sua live o jornalista Sardenberg: “Entre a vergonha e a guerra, escolheu a vergonha. E vai colher a vergonha e a guerra!”. Dito e feito. A guerra foi inevitável. Quem quiser saber mais sobre esse episódio histórico pode assistir ao ótimo filme O destino de uma nação (2017), com Gary Oldman no papel de Churchill [10].
A analogia da história resgatada por Sardenberg com o momento de pandemia em que vivemos é clara e precisa: não adianta criar um conflito entre a saúde e a economia para optar pela segunda, pois, por esse caminho, perderemos ambas.
O que houve com o slogan “mais Brasil, menos Brasília”?
No mês passado, a briga entre Bolsonaro e governadores e prefeitos foi parar no STF. A Suprema Corte decidiu contra o presidente, determinando que os gestores estaduais e municipais têm autonomia para decretar medidas restritivas contra o coronavírus, mesmo que o governo federal adote providências em sentido contrário. Entre os poderes atribuídos aos gestores locais estão a decretação de isolamento social, quarentena, suspensão de atividades escolares e restrições ao funcionamento do comércio.
A briga jurídica não condiz com a promessa de Bolsonaro no plano político durante a eleição e nos lembra o quanto os slogans de campanha, que deveriam simbolizar e condensar em poucas palavras diretrizes políticas, muitas vezes são esvaziados de sentido tornando-se apenas frases de efeito (sem efeito algum). Dentre as várias e questionáveis frases da campanha bolsonarista à presidência em 2018, tínhamos “Meu partido é o Brasil”, frase que de certo modo nega o caráter conflitivo da política, que é a disputa pela pólis [7], confundindo partido político com a própria pólis: dizer que seu partido é o seu país como um todo, na prática, não quer dizer muita coisa, ainda mais em um país tão grande, tão diverso e com tantos interesses conflitantes como o Brasil.
Mas no que se refere ao conflito entre o governo federal e os estados, é irônico lembrar um outro slogan: “Mais Brasil, menos Brasília”, que trazia uma promessa de descentralização do poder e melhor redistribuição de recursos entre os entes federativos [8]. Teoricamente, poderia ser algo positivo para muitas regiões. Na prática, vemos o oposto: o caráter centralizador do governo federal ficou evidente nesta que é a maior crise política, econômica e sanitária enfrentada por Bolsonaro desde que chegou ao Planalto, inconformado com a prerrogativa dos gestores regionais de poderem tomar medidas que atendam às situações específicas de suas localidades.
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