quarta-feira, 7 de abril de 2021

27 anos sem Kurt Cobain: o Nirvana e as tecnologias digitais


No dia 8 de abril de 1994, após uma semana desaparecido, o músico Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, era encontrado morto na estufa de sua residência, em Seattle. Era o fim daquela que é considerada uma das maiores bandas de rock da história e para muitos a maior da década 1990. Ícone da vertente grunge do rock (juntamente com bandas como Pearl Jam, Soundgarden e Alice in Chains), o Nirvana, em sua curta carreira, impactou não só a música, mas também a moda, a economia [1] e, por que não dizer, a minha vida.

Até o suicídio de Cobain, eu era uma criança que ouvia no máximo pop/rock. Não dava muita bola para o Nirvana. A barulheira guitarrística da banda, cheia de microfonia e distorção, me impedia de perceber o quanto eram belas as melodias das composições de Cobain e seus colegas de grupo. Mas isso mudou lá pela segunda metade dos anos 1990, com a chegada da minha adolescência e com uma mídia revirando o legado deixado pelo falecido astro. A MTV, que poucos anos antes exibira o clipe de Smell Like Teen Spirits exaustivamente [2], sendo a principal responsável pela explosão da banda, nos anos subsequentes à morte de Cobain fazia quase a mesma coisa com o álbum acústico Nirvana Unplugged in New York. Com um som “desplugado” tudo ficou mais fácil para mim. Aquele álbum foi a minha transição para sons mais pesados que me acompanhariam pelos anos seguintes, e o Nirvana viria a ser a personificação de minha concepção de banda de rock por excelência (e acho que o Nirvana é isso para mim até hoje).      

Mais do que uma das maiores bandas de todos os tempos, coube ao grupo formado por Cobain (guitarra e voz), Krist Novoselic (baixo) e Dave Grohl (baterista que depois se tornaria vocalista e guitarrista do Foo Fighters) o rótulo de “última grande banda de rock”. Em um artigo para uma compilação especial do jornal O Globo, no final da década de 1990, o crítico musical Tom Leão se referiu ao Nirvana como o “réquiem do rock”. A palavra se refere a um tipo de prece dedicada aos mortos. Sim, o crítico decretou o fim do rock no final dos anos 90, e o Nirvana teria sido a última grande banda do gênero.

Ao longo dos anos, Tom Leão continuou se referindo ao Nirvana como a última grande banda de rock e ao seu lendário vocalista como o último astro: "De lá para cá, não apareceu ninguém parecido com ele. Nem chegou perto", avalia já em 2014 [3]. Mas o crítico não é o único a pensar assim. A história da música e a crítica musical aos poucos construíram essa memória sobre o Nirvana, como “o último grande estouro do rock” [4]. Nesta semana, em que se completam 27 anos sem Kurt Cobain, o periódico El Pais se referiu a ele como “o homem que liderou a última revolução do rock” [5]. A lenda está aí. Cai quem quer.   


Internet e as novas mídias digitais

Gosto de entender as conjunturas sociais que colaboram ou mesmo possibilitam que determinados artistas, obras e vanguardas artísticas se destaquem. Ou seja, os modos como sociedades e arte dialogam em períodos da história. Como já disse, sou fã da banda, e pouco me interessa se ela foi ou não a última das grandes. O que me interessa é saber por que falam isso. E uma possível resposta veio, sem querer, de uma outra grande banda dos anos 90, o Oasis. No documentário sobre a banda chamado Supersonic (recomendo!) [6], focado nos mega-shows que o Oasis fez em Knebworth no ano de 1996, quando estava no auge, em certo momento, Noel Gallagher (ou seria o Liam? As vozes são parecidas) diz o seguinte: “gosto de pensar naquele show como o último grande encontro de pessoas antes da internet”.

É a deixa para entendermos a conjuntura. O Nirvana foi a grande banda de rock da primeira metade dos anos 90. Seu vocalista morreu em 94. O show ao qual um dos irmãos Gallagher se refere foi em 96. A internet estava crescendo. Coincidência? Para mim, não. A internet mudou nossa maneira de ouvir música e mexeu com a capacidade da indústria fonográfica de criar mitos. Mega-astros são mais difíceis de forjar hoje em dia. Não temos tantos clipes estreando no programa Fantástico, como acontecia com os de Michael Jackson. E, quando temos, muita gente não assiste porque está vendo Netflix ou ouvindo o lançamento de um artista qualquer na internet. A MTV, que impulsionou o Nirvana por meio da exibição massiva de Smell Like Teen Spirits, perdeu força nas últimas décadas.

A questão sobre “a última grande banda de rock” não é tanto estética ou artística. Não tem a ver com a “qualidade” do rock feito de meados dos anos 1990 para cá, mas com as mudanças tecnológicas, com as formas pelas quais a música chega aos nossos ouvidos. É interessante como as plataformas midiáticas capturam e moldam nossos sonhos, gostos e opiniões. Como um fã, eu poderia atribuir o rótulo de última das grandes às qualidades, atitude e honestidade artística do Nirvana. Poderia falar da genialidade rara de Cobain. Poderia ainda dizer que tudo o que foi feito no rock do final da década de 1990 para cá foi de qualidade razoável e por isso o Nirvana segura o bastão de grande banda até hoje. Mas seria uma tentativa de explicação com base em características intrínsecas à música, à arte. Só que a arte não explica tudo por si mesma. Concepções como talento, genialidade e sucesso sempre são forjadas através de contextos e conjunturas sociais. No caso do Nirvana, as mudanças tecnológicas e a rápida ampliação da internet e das mídias digitais, com as consequentes mudanças sociais possibilitadas, parecem-me fundamentais para explicar o modo como a banda entrou para o inconsciente coletivo dos roqueiros.


Para além do Nirvana: novas tecnologias, novas lógicas de mercado

Hoje temos Youtube, Spotify, Deezer, muita informação e dispersão. Tudo isso pulverizou a força da indústria fonográfica e da mídia tradicional, que ainda influenciam as tendências, mas não tanto quanto nas últimas décadas do século passado. Mega-astros pop como Michael Jackson e Madonna foram possíveis na década de 1980, no auge da cultura de massa. Entraram para a história, mas dificilmente fenômenos equivalentes irão se repetir no contexto atual. Isso não tem tanto a ver com o talento desses artistas, mas com as mudanças nas tecnologias de comunicação. 

Enxergar as coisas dessa forma nos faz perceber que quando alguém diz que “a música de antigamente é que era boa”, frequentemente está falando sobre mídia e não sobre música. Em 2019 o cantor Milton Nascimento disse em uma entrevista que “a música brasileira está uma merda” [7]. A afirmação repercutiu bastante na ocasião gerando polêmica. Em seguida, o músico fez uma publicação em rede social sendo mais específico e explicando que estava se referindo “exclusivamente à música feita no mainstream do mercado nacional, consumida pela massa” [8]. 

Ou seja, a crítica, no fundo, é à mídia de massa. Na medida em que as novas tecnologias, como as redes sociais, o Youtube e os serviços de streaming de áudio, foram facilitando as demarcações dos nichos do mercado fonográfico (hip hop, metal, indie rock...) a mídia de massa teve que ficar cada vez mais... massiva. Isso significa dizer que TVs e rádios miram em um “denominador comum”, em algo que grande parte das pessoas gosta (ou está acostumada a gostar), deixando para os nichos os artistas diferenciados. Portanto, se o que toca nas mídias de massa desagrada os seus ouvidos, saiba que a “música de qualidade” ainda existe, mas é preciso garimpá-la. 

Movimento semelhante pode ser visto nos cinemas nos últimos anos: as bilheterias das salas de exibição foram quase que monopolizadas por filmes de heróis, animações infantis e franquias de ação com muita explosão (Velozes e Furiosos, por exemplo), enquanto os filmes, digamos, mais “sérios”, “artísticos” ou “cults” vêm migrando para o streaming. As salas de cinema miram no que vende mais, e quem não curte os blockbusters corre para os nichos.          

Então essa é a teoria: talento à parte, por trás do selo de réquiem do rock que o Nirvana até hoje carrega, o que existem são mudanças significativas nas tecnologias de veiculação da música. E essas mudanças também contribuíram para o modo como o público, a crítica e os historiadores construíram a memória do rock e o papel do Nirvana nessa memória. 


Referências:

[1] e [3]

http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2014/04/livro-tenta-explicar-mito-em-torno-de-kurt-cobain-20-anos-apos-sua-morte.html

 

[2]

https://rollingstone.uol.com.br/noticia/por-que-kurt-cobain-nao-gostava-de-tocar-smells-teen-spirit-do-nirvana/

 

[4]

https://www.camara.leg.br/radio/programas/497777-25-anos-de-smells-like-teen-spirit-do-nirvana/

 

[5]

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/04/cultura/1554387027_625739.html?utm_source=Facebook&ssm=FB_BR_CM&fbclid=IwAR3OeFZhEg6VL1g5B0l6YXWRKc-4mJ90Y2g27W9O75eD_gU2lGdyc_McnLI#Echobox=1617056459

 

[6]

https://www.omelete.com.br/musica/oasis-netflix-colocar-supersonic-em-seu-catalogo

 

[7]

https://www.itapemafm.com.br/em-entrevista-polemica-milton-nascimento-declara-que-musica-brasileira-esta-uma-merda

 

[8]

https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2019/09/23/milton-nascimento-musica-brasileira/      


sexta-feira, 2 de abril de 2021

Meritocracia e o networking privilegiado dos alunos da FGV


Nos tempos da faculdade eu costumava dizer aos colegas que quando precisássemos de dinheiro poderíamos pintar o corpo e nos disfarçar de calouros para conseguir um trocado pelas ruas. Eu falava isso em tom de brincadeira, mas havia um fundo de verdade. As pessoas são mais propensas a ajudar um calouro universitário do que um morador de rua, por exemplo. Certamente, por uma questão de identificação, as classes média e alta têm mais simpatia por seus iguais. Claro que conseguir dinheiro dessa forma malandra teria suas limitações. Não seria possível em qualquer época do ano; seria necessário que o golpe coincidisse com o início do semestre letivo (nem todo mês é mês de chegada de calouros). Outra limitação possivelmente seria a cor da pele do “calouro”: quanto mais clara fosse, mais fácil aplicar o golpe. A questão racial (vulgo racismo) influi no grau de empatia das classes.

Na semana passada bombou nas redes sociais brasileiras a gincana promovida pelos calouros e calouras da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O assunto ficou entre os Trending Topics do Twitter, para onde são alçados os temas do momento. A proposta era que os novos alunos acionassem “celebridades” da instituição, ou seja, pessoas conhecidas da própria FGV. Mas o vídeo que bombou na internet aponta que os novos alunos não entenderam direito a ideia da gincana e acionaram seus contatos para pedir declarações de apoio a diversos famosos. 

De acordo com a estudante Gabriela Ricci, que ficou mais conhecida como a “Gabi da AE4”, inicialmente teria, sim, havido um equívoco, mas ao perceberem que o erro estava dando certo, que as celebridades estavam enviando seus depoimentos, a turma decidiu seguir por esse caminho [1]. Equívoco total ou parcial, o resultado nós já sabemos: uma constelação de famosos dando apoio aos calouros da FGV na gincana: Xuxa, Sérgio Moro, Rodrigo Maia, Fábio Porchat, Ana Maria Braga, Tábata Amaral, João Amoedo, Cafu e até o internacional Ed O'Neill (o Jay, de Modern Family), dentre tantos outros. 

A lista, tão surpreendente quanto aleatória, gerou um vídeo que viralizou. O interessante da história é como, a partir de um mal-entendido, os estudantes conseguiram mobilizar tanta gente importante. Em seguida, diversas marcas, como Amazon, Chevrolet e Rexona, entraram na brincadeira e fizeram posts se referindo à “gincana da GV” [2], incluindo a possibilidade de apoio à brincadeira [3]. A imprensa também noticiou o inusitado, dando ainda mais visibilidade ao caso, ressaltando o quanto a história tem de curiosa.

Entretanto, algo que foi pouquíssimo ressaltado é o quanto essa brincadeira pode nos fazer pensar sobre meritocracia, concentração de renda e oportunidades. A partir de um equívoco, novatos de uma das instituições de ensino mais caras do Brasil conseguiram com relativa facilidade acessar uma constelação de gente famosa e influente. Agora pense: você acha que essa facilidade não se reflete no mercado de trabalho? Pense nos acessos privilegiados às melhores posições no mercado que essa turma possui. E olha que estão apenas começando na faculdade.

Sem querer, os alunos da FGV mostraram para o país o networking privilegiadíssimo que têm. Não vou entrar aqui no grau de intimidade que esses alunos possuem com cada um dos famosos que aparece dando seu apoio, mas certamente uma turma de uma instituição privada mais barata ou mesmo de uma universidade pública (e olha que há muita gente bem-nascida nas universidades públicas) não conseguiria tantos nomes de peso em tão pouco tempo. 

Networking conta muito. E, dependendo do estrato social de onde se venha, esse networking pode ser extraordinário e fazer toda a diferença. Isso ficou muito claro para mim desde os tempos da faculdade. Suburbano e aluno de um curso concorrido de uma universidade federal, tive contato com muita gente com uma bagagem socioeconômica bem acima da minha. Foi um dos momentos mais perceptíveis que tive de que na “corrida da vida” as pessoas largam de pontos bem diferentes. Algo que hoje para mim parece óbvio, mas que naquela época eu ainda estava aprendendo. 

Lembro de uma conversa que tive na época sobre oportunidades, com um amigo, em que chegamos à conclusão de que pegar alguém recém-formado no ensino médio morador de comunidade de subúrbio e matricular em uma PUC (ou qualquer dessas universidades muito caras), com tudo pago, talvez não fosse algo muito efetivo para o futuro da pessoa. Claro que o hipotético privilegiado ganharia uma baita oportunidade e também é claro que isso seria melhor do que se não a ganhasse. Certamente, levando em conta seu ponto de partida, ter um diploma de uma instituição de prestigio representaria uma vantagem, porém a questão nunca está somente no diploma, em um documento frio, em um pedaço de papel. O diferencial está em grande parte no networking que alunos de instituições caras e renomadas já trazem antes mesmo de se tornarem alunos. 

De um ponto de partida privilegiado, tudo fica muito mais fácil. Um mal-entendido, uma falha de interpretação de texto, gera boas oportunidades de contatos. Alguns calouros da gincana da GV participaram de uma live com Caito Maia, fundador da Chillibeans. O empresário destacou a inteligência e habilidade dos alunos para o marketing e empreendedorismo: “Chegaram nesse resultado com perseverança e insistência. (…) Isso é muito importante, por exemplo, quando se está gerindo um negócio e criando uma marca” [4]. Pois então, lembra quando eu disse que as classes média e alta têm mais simpatia por seus iguais? Quem é privilegiado cai de cara na oportunidade até quando tropeça na rua.  

Gabriela Ricci, por exemplo, é filha do empresário Dirley Pingnatti Ricci, da empresa de locação de automóveis Unidas. Ele foi vice-diretor da Locamerica, empresa do mesmo ramo. O empresário fundou em 1994 a Auto Ricci, que foi adquirida pela Locamerica em março de 2017, em um negócio que, na época, gerou um faturamento de R$ 1,126 bilhão ao ano e 43 mil veículos [5]. Nada mal! Mas Gabi afirma que a família não a ajudou em nada com os vídeos [6]. A pergunta que fica é: será que essa “ajuda” não se dá indiretamente, de forma desapercebida para quem está dentro da bolha?

Cabe então refletirmos sobre aquilo que foi pouco ressaltado nas notícias sobre a gincana. Para gestores e recrutadores, quando priorizam determinados perfis de estudantes de instituições de elite, não estariam sendo mais benevolentes com os seus iguais? Com aqueles que possuem endereços e currículos semelhantes? E, sendo assim, quem estariam excluindo? 

Para quem acredita em meritocracia, subestima as forças sociais e superestima a capacidade individual, será que podemos mesmo falar em meritocracia quando tantos partem de posições tão largamente distintas? Muitas pessoas guardam uma crença exagerada na meritocracia porque não têm a dimensão da distância entre os indivíduos e acham que tudo se resume a esforço ou talento. O exemplo da gincana da FGV pode ajudar a lançar luz a esse respeito.  

Para quem não tem a oportunidade de estudar em uma instituição de elite e que possivelmente não conseguiria acessar tantos nomes famosos e obter o mesmo retorno que os alunos da FGV obtiveram, procure não se culpar tanto se no futuro as portas não se abrirem conforme o esperado. Tente entender que nem tudo depende de você. Mas não desista! É justamente por conta das desigualdades, das diferenças nos pontos de partida, que aqueles que não são tão privilegiados precisam se esforçar muito mais. E busque converter essa compreensão da desigualdade social não só em esforço individual, mas em ação política coletiva. Por exemplo, apoiando uma educação pública que sirva para compreender e reduzir essas desigualdades e não para a manutenção das mesmas.

E vale destacar que toda a minha crítica aqui se resume ao sistema, não à instituição FGV, uma das maiores referências em ensino e pesquisa do país e pela qual tenho bastante admiração, e nem aos alunos, aos quais desejo muito boa sorte e prosperidade na jornada de aprendizagem e no mercado de trabalho. Persistência eles demonstraram que, de fato, possuem. 


Referências:

[1] e [3] https://oglobo.globo.com/cultura/nao-era-intencao-mas-valeu-esforco-diz-gabriela-ricci-gabi-da-fgv-24943079

 

[2] https://propmark.com.br/digital/marcas-criam-posts-de-oportunidade-para-gabi-da-ae4-da-fgv/

 

[4] https://www.istoedinheiro.com.br/a-gente-nao-esperava-toda-essa-repercussao-diz-gabi-da-fgv-sobre-atencao-de-marcas-e-famosos/

 

[5] https://valor.globo.com/empresas/noticia/2017/12/29/vice-presidente-da-locamerica-renuncia-apos-negocio-com-unidas.ghtml

 

[6] https://istoe.com.br/conheca-gabi-da-ae4-a-estudante-que-viralizou-com-videos-de-famosos-apos-mal-entendido/


1 ano sem Maurício Tuffani: um gigante da divulgação científica, para além das redes sociais

No último dia 31 de maio de 2022, um ano se completou da morte do jornalista e divulgador científico Maurício Tuffani. Lembro-me bem da dat...