sábado, 19 de fevereiro de 2022

“Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”: o que influenciadores digitais podem aprender com o tio Ben?

História em quadrinhos também é cultura. Pelo menos para mim. Faz parte da minha infância e adolescência, da minha formação intelectual (por que não?) e do meu corpo, porque até tatuagem baseada em HQ eu tenho. Uma história fundadora do Homem-Aranha enquanto personagem envolve Benjamin Parker, tio de Peter Parker, o “tio Ben”. Peter Parker ainda estava começando a explorar seus poderes recém-adquiridos por conta de uma picada de uma aranha radioativa quando viu um ladrão sendo perseguido por um guarda de segurança. Mesmo podendo pegar o ladrão, Peter nada faz, por entender que, apesar de seus poderes, lutar contra o crime não era seu papel. O ladrão acaba fugindo.

Pouco depois, tio Ben é morto por um ladrão. Peter agora resolve usar seus poderes para capturar o assassino de seu tio. É ai que ele descobre, para seu próprio horror, que seu tio foi morto justamente pelo mesmo ladrão que havia deixado escapar. Tomado pelo sentimento de culpa, ele decide que dali em diante lutaria, sim, contra o crime, movido pelo lema que aprendeu com seu tio: “Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”. É aí que nasce o Homem-Aranha enquanto super-herói.

Mas o que youtubers, podcasters e influenciadores digitais em geral têm a aprender com o tio Ben? Sem dúvida, muita coisa. Nas últimas décadas as mídias digitais cresceram bastante e democratizaram o espaço no debate público. Muita gente que estava limitada a ser receptora no contexto das chamadas “mídias tradicionais” (rádio, TV, jornal impresso…) foi alçada, por meio da internet, ao papel de emissora, opinando, influenciando fazendo valer suas posições e, lamentavelmente, também desinformando.

Esse novo cenário apresenta novos problemas. Um deles, muito bem colocado por Bolívar Torres, é uma “crise de expertise” [1], ou seja, muita gente agora pode falar sobre muita coisa, mas nem todas essas pessoas são, de fato, qualificadas para tal fim. Isso abriu espaço para um “achismo” que, aos poucos, parece ter feito grande parte da audiência atual ter dificuldade em diferenciar o que é opinião do que é ciência. Ou, nas palavras do professor Eugênio Bucci, “O senso comum não diferencia mais o que é um juízo de valor e o que é um juízo de fato” [1].

Intrinsecamente relacionado a esse problema, há um outro, que é uma certa incompreensão dos influenciadores digitais a respeito da responsabilidade que eles adquiriram neste novo contexto da comunicação digital. E é aí que entra a frase do tio Ben: “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. A internet deu voz ou ampliou a voz dessas pessoas, mas isso tem um custo – a responsabilidade com o que se diz – ou ao menos deveria ter esse custo!

Para ficarmos em um “case” que tem sido bastante comentado, o Flow Podcast é um bom exemplo dessa esquiva dos influenciadores digitais em relação à responsabilidade enquanto comunicadores. Bruno Aiub, o Monark, foi afastado do Flow após defender que no Brasil deveria existir um partido nazista. Nem de longe acho que Monark seja nazista e acusá-lo disso seria desonestidade intelectual. Trata-se, sim, de um dos mais icônicos exemplos de pessoas que se tornaram comunicadoras para amplas audiências, entretanto, sem nenhum preparo para o debate público. Além de despreparado, de ser orgulhosamente ignorante, Monark e os demais produtores do Flow por diversas vezes levantaram a bandeira da informalidade, do despojamento e do descompromisso para, consciente ou inconscientemente, se esquivarem da responsabilidade e dos impactos dos conteúdos que o podcast veicula. Essas duas características – a ignorância orgulhosa e a negação da responsabilidade – fazem do Flow e de Monark sinais inequívocos dos tempos.

Quanto à ignorância orgulhosa, Lênio Streck escreve um texto divertido, direto e assertivo [2], tomando de empréstimo o termo “fundãocracia”. Usado por Antônio Prata na Folha de São Paulo. Fundãocracia, nas palavras de Streck, seria o cenário atual em que “os perdedores, os burros, os caras do fundão da classe da oitava série acabam se dando bem e se transformam em ‘comunicadores’. Ou políticos.”


Seria Monark um Jô Soares do Mundo Bizarro?

Gostaria de ilustrar o problema fazendo uma comparação entre a comunicação digital atual e o tempo das “mídias tradicionais”. Na minha infância, o entrevistador mais popular do Brasil era Jô Soares, que falava uns seis idiomas (hoje em dia deve estar falando uns dez). Um comunicador bem culto, autor de livros que renderam a ele o título de imortal da Academia Brasileira de Letras (Jô também é membro da Academia Paulista de Letras). Na Rede Globo, o bastão de principal apresentador foi há alguns anos passado por Jô para Pedro Bial, mas aí veio a explosão das mídias digitais e redes sociais.

E então emergiram figuras como o Monark, alçado ao posto de entrevistador mais bombado nos últimos anos. Não um nazista, mas um moleque com um pensamento raso sobre os assuntos que frequentemente se propõe a abordar (direito, filosofia, economia, sociologia, política etc). E o que é pior, por vezes ele demonstra certo orgulho dessa ignorância. Certa vez ele tuitou: “Eu acho que vc aprende muito mais sobre filosofia conversando, pensando, lendo, vendo vídeos, do que indo à faculdade”. Além de não ter parâmetro para fazer tal comparação (porque ele próprio não foi à faculdade), seu comentário é reflexo de um pensamento anti-intelectual e antiacadêmico que tem muito lastro nas mídias digitais. Depois de receber muitas críticas (que bom!), ele tentou remendar: “só deixando claro, ‘conversando, pensando, lendo, vendo vídeos’ sobre filosofia, eu digo”. Ah, sim. Agora sim (só que não).

É bastante exemplificativa a discussão que Monark teve com a advogada Gabriela Prioli, sobre a necessidade de fundamentar as opiniões com dados e evidências [3]. A relutância de Monark em entender isso foi enorme. “É muito chato não poder conversar, falar sobre o que eu penso, porque eu não tenho dados e estatísticas”, disse ele. Pois é, Monark, mas comunicação com o grande público é isso aí. Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidade. É preciso ter cuidado com a “opinião” que se emite e buscar ao menos o mínimo de fundamento para ela.

Para continuarmos na comparação entre Monark e Jô Soares, a coisa piora quando pensamos o quanto Monark, embora despreparado, adota com frequência um tom confrontador, menos comum aos programas de entrevista do passado, mas bem comum nas “tretas” de redes sociais. Mais um exemplo do quanto o Flow e Monark são sinais dos tempos. Não que antigos apresentadores, como Jô ou Marília Gabriela, não confrontassem seus entrevistados, mas a confrontação, o duelo retórico, a batalha discursiva (tantas vezes esvaziada de dados, estatísticas e evidências) viraram lugar-comum. 

Mas há um problema: se você é um entrevistador e possui um tom conflitivo em relação aos entrevistados, as chances de você se dar mal são grandes, pois normalmente os entrevistados entendem melhor o assunto da entrevista que você (justamente por isso estão sendo entrevistados). Vale tentar buscar um certo equilíbrio.

Nos quadrinhos dos Super-Homem (mais uma vez: história em quadrinhos também é cultura!), o Mundo Bizarro era um mundo com tudo invertido, falhado… bizarro. Aquaman não sabia nadar, e o Flash era “o homem mais lerdo do mundo” [4]. Comparar Monark e Jô Soares pode ser por sí só uma comparação bizarra, mas ao menos ajuda a pensar no debate público e na esfera pública no contexto da história recente das mídias. A conclusão me faz achar que as coisas pioraram.


A negação da responsabilidade

Tanto em relação à discussão com Gabriela Priolli quanto em outros casos, o Flow e Monark defenderam a bandeira da informalidade. A produção nem se posiciona como um programa de entrevistas, mas como um podcast de conversa, bem informal, como um papo de bar. Assistindo a um outro vídeo [5], de um canal do Youtube com quase 1 milhão de inscritos, que repercutiu a discussão entre Prioli e Monark em favor deste e contra Prioli, vê-se o quanto a audiência é capaz de comprar essa ideia de informalidade e descompromisso sem diferenciar que uma coisa é aquilo que um produtor de conteúdo diz de sua produção, ou seja, o modo como ele a apresenta, o modo como ele quer que essa produção seja vista; a outra é aquilo que a produção de fato é e os impactos que ela causa. Essa é uma discussão recorrente nas escolas de comunicação social e/ou em estudos que envolvem ética jornalística, mas que vem se perdendo no meio da profusão de conteúdo do mundo digital. O vídeo, aliás, é uma ode ao achismo, é um show de desprezo aos dados e à objetividade dos fatos, exemplificando o que Bucci disse sobre o senso comum não diferenciar mais o que é um juízo de valor e o que é um juízo de fato e o que Bolivar Torres expõe ser uma crise de expertise.

Quem melhor alertou Monark e a equipe do Flow sobre a responsabilidade de falar com milhões de pessoas, sobre as implicações que isso pode acarretar e sobre o quanto o argumento do despojamento pode ser falacioso, foi o compositor Rogério Skylab [6] [7]. Monark diz: “A gente gostaria que isso aqui fosse uma conversa de botequim. Não podemos ser só dois moleques idiotas?”. O compositor responde: “Você acha que está num botequim? Tem uma multidão vendo lá fora, cara! Querendo ou não, você sendo formado ou não, isso aqui é um programa jornalístico. A forma do programa é de conversa, mas é jornalístico. Tudo que se fala aqui tem uma responsabilidade”.

Se o interesse é levar um papo de botequim, o que não falta é botequim bom por aí. Claro que o interesse na verdade é monetizar, angariar patrocinadores e seguidores, mas ao mesmo tempo balançar a bandeira do despojamento para se isentar de estudar o que se diz e de responder por isso quando for o caso.

Esse é o desafio: convencer os influenciadores digitais, os produtores de conteúdo, os youtubers, os podcasters, a audiência e, no fim das contas, a sociedade em geral, da responsabilidade a respeito da comunicação social nesse mundo digital em que (quase) todos podem falar, ainda que nem todos entendam tão bem do que estão falando. E vale reforçar: história em quadrinhos também é cultura!


Referências:

[1]https://oglobo.globo.com/cultura/caso-monark-especialistas-explicam-por-que-achismo-esta-rivalizando-com-ciencia-o-saber-25390781

[2]https://www.conjur.com.br/2022-fev-17/senso-incomum-jenios-redes-formadores-opiniao-pobre-pais

[3] https://www.youtube.com/watch?v=7oDXXkA3BkI

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Mundo_Bizarro

[5] https://www.youtube.com/watch?v=q6HOjAMfkO8

[6] https://www.youtube.com/watch?v=REAzCtcsa3c

[7] https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/quando-skylab-alertou-monark-sobre-a-irresponsabilidade-de-suas-falas/




quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

América Latina: redemocratização, neoliberalismo e desconfiança na democracia

 


Antigamente é que era bom” ou “antigamente a vida era melhor”. São frases que comumente ouvimos por aí. Em geral, vale destacar a imprecisão (antigamente quando? Antigamente onde? Era melhor para quem?). Mas no Brasil existe uma grande chance daqueles que usam essas frases estarem a se referir à ditadura militar. Muitas pessoas hoje de meia-idade se mostram saudosas dos anos de chumbo e defendem que a vida era melhor naquela época. Mais do que isso, em um típico exemplo de “saudade do que não se viveu”, há jovens que repetem esse discurso sem nunca terem vivido os tempos de repressão da ditadura. Esse saudosismo de um passado idílico, romantizado, misturado a uma grande desconfiança a respeito das instituições, mais especificamente das instituições democráticas, é um dos fermentos que fizeram crescer uma extrema-direita protofascista que alçou ao poder no Brasil o presidente Jair Bolsonaro.

Aqui vamos analisar a crise das instituições públicas e a desconfiança nas instituições democráticas, mas com um foco bem específico, a América Latina e, mais ainda, o Brasil, com destaque para o papel do neoliberalismo na crise e na desconfiança. Para isso, partimos principalmente da leitura dos artigos “O papel da sociedade e das instituições na definição das crises políticas e quedas de presidentes na América Latina”, de André Luiz Coelho Faria de Souza, e “A desconfiança nas instituições democráticas”, de José Álvaro Moisés, ambos cientistas políticos. A ideia é partir dos dados e proposições dos textos para acrescentar novas proposições.

Enquanto Souza (2013) analisa crises políticas e quedas antecipadas (impeachments) de presidentes na América Latina no período imediatamente posterior à redemocratização, concluindo que o pior cenário para um mandatário seriam manifestações nas ruas pedindo a sua saída do poder ao mesmo tempo em que conflitos institucionais estivessem acontecendo” (SOUZA, 2013, p. 227) (algo que se viu no Brasil com Collor e, posteriormente à publicação do artigo, com Dilma, mas também em outros países, como a Bolívia, com as renúncias de Lozada e Mesa, todos que enfrentaram oposições nas ruas e nas instituições, como o congresso/parlamento); Moisés (2005) se concentra na ampla e contínua relação de desconfiança que os brasileirso têm com as suas instituições democráticas, ainda que, de modo geral, digam majoritariamente que apoiam a democracia. O autor se vale de diversos modelos teóricos para explicar a erosão da confiança dos cidadãos.


Da ditadura ao neoliberalismo

A experiência latino-americana de redemocratização, a partir da década de 70 e, no caso específico do Brasil, no meado da década de 80, tem uma característica peculiar: ela coincide com outros dois fatores geopolíticos e econômicos globais que influenciaram negativamente o bem-estar e a qualidade de vida dos trabalhadores, direta e indiretamente. O primeiro deles é a ascenção do neoliberalismo [1]. A doutrina, fortemente influenciada pelas ideias da Escola de Chicago [2], começou a ser posta em prática já em meados dos anos de 1970, no Chile comandado pelo ditador Augusto Pinochet. Mas foi na década de 1980, principalmente por meio do presidente americano Ronald Reagan e da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, que o neoliberalismo começa a ser disseminado pelo mundo.

No final daquela década, em 1989, as ideias neoliberais ficam ainda mais concretas e bem delineadas teoricamente quando o economista John Williamson publica um artigo com um conjunto de regras econômicas que ficariam conhecidas como Consenso de Washington [3] [4]. O receituário inclui redução do Estado, privatizações, desregulação do mercado, enfraquecimento dos direitos trabalhistas etc. Medidas que, em um longo prazo, em países periféricos como os da América Latina, aumentaram a desigualdade e a pobreza, a ponto de até mesmo economistas do FMI chamarem a atenção para a ineficiência do receituário neoliberal [5].

Assim como tantas outras coisas, as práticas neoliberais demoraram um pouco mais a chegar no Brasil, sendo implementadas no início dos anos 1990, com Fernando Collor de Mello, e aprofundadas nos governos FHC. Mesmo nos governos petistas de Lula e Dilma, não há uma ruptura abrupta com o neoliberalismo (Santos, 2020).


Fim do bloco socialista

Além do neoliberalismo, um outro fator geopolítico que coincide com a redemocratização da América Latina é o enfraquecimento do bloco socialista até a dissolução da União Soviética, em 1991. Não é coincidência que a doutrina neoliberal tenha avançado, nas décadas de 1980 e 1990, na medida em que o bloco socialista se enfraquece e deixa de existir. A queda do muro de Berlin, por exemplo, acontece no mesmo ano do Consenso de Washington, em 1989. Com a implosão da experiência dos estados socialistas no mundo, o capitalismo pôde recrudescer, tornar-se mais voraz contra os direitos trabalhistas e a classe trabalhadora, precarizando cada vez mais a mão de obra, com menos temor do risco do espírito do comunismo encarnar nas lutas dos trabalhadores.

O projeto político-econômico preconizado pelo Consenso de Washington no início dos anos 1990 foi o vencedor da disputa entre “estatismo versus capitalismo de mercado” (…). O retorno da democracia na América Latina a partir do fim da década de 1970 e a posterior adoção de reformas voltadas para o mercado trouxeram à região a promessa de desenvolvimento econômico e melhorias das condições de vida dos seus cidadãos.

No entanto, ao longo da década de 1990 e da primeira metade dos anos 2000 o que se viu em grande parte dos países da região foi justamente o oposto: piora dos indicadores sociais e o aumento da desigualdade, trazendo a reboque desencantamento com a democracia e com o neoliberalismo. Pesquisas como o Latinobarómetro identificaram o descontentamento dos cidadãos com as chamadas “promessas não cumpridas” (SOUZA, 2013, p. 238).

Por isso, aqui classificamos o fim do bloco socialista como um fator geopolítico contemporâneo do processo de redemocratização da América Latina que, indiretamente, contribuiu para a piora dos indicadores sociais dos latino-americanos, pois com a derrota dos estados socialistas o capital não viu mais a necessidade de barganhar com as classes populares como havia feito por longos anos do século 20. A “ameaça” socialista ajudava a refrear os excessos do capital. No Brasil, um exemplo dessa barganha é a Consolidação das Leis Trabalhistas no período getulista. Em reportagem publicada pelo Jornal do Brasil em 2 de maio de 1943, Vargas declara que para a elaboração da nova legislação trabalhista ele buscou o equilíbrio entre o capitalismo e o socialismo [6]. Era uma forma de conter a influência de socialistas e anarquistas nos movimentos operários. Mais do que isso, Getúlio Vargas disputou as lideranças sindicais contra esses grupos e para fazer essa disputa foi preciso, além da força e da coerção, fazer também algumas concessões. Em grande medida, a experiência mundial da social-democracia em diversas nações também se explica por essa dinâmica, em que o capital precisa de alguma forma negociar com a classe trabalhadora para afastar o socialismo de suas fileiras. Essa mesma dinâmica também explica em parte o chamado “estado de bem-estar social” [7], que vigorou em meados do século 20 e que o neoliberalismo se esmerou para erodir.


Desilusão e desconfiança

A América Latína recém-democrática dos anos 1980, 1990, 2000, encontra um outro cenário, diferente do getulismo e do meado do século 20, sem o socialismo no horizonte de expectativas e, justamente por isso, enfrentando um capitalismo muito mais predatório. Desse modo, para muitos latinoamericanos, a redemocratização se mistura à frustração, por conta de uma piora (ou mesmo estagnação) na qualidade de vida no período democrático. Esse sentimento, com o passar dos anos, se converte em desconfiança nas instituições democráticas.

Em dezessete países latino-americanos pesquisados pelo Latinobarómetro, a partir de meados dos anos 1990, apenas 1/5 do públco expressou “muita” ou “alguma” confiança em partidos políticos, e menos de 1/3 declarou confiar nos governos, parlamentos nacionais, nos funcionários públicos, na polícia e no judiciário. Estudos de casos individuais como o do México confirmam esses resultados. O panorama geral das novas democracias mostra, dessa forma, que nesse caso não está em questão uma crise de confiança política que, não logrou se enraizar em sua experiência recente, mas as dificuldades do novo regime para adensar a ligação orgânica entre os cidadãos e as estruturas de poder (…). Quando as instituições não contam com a confiança dos cidadãos, têm dificuldade para funcionar como mediação entre suas expectativas e os objetivos propostos por governos e por lideranças políticas (MOISÉS, 2005, p. 47-48).

Em países como o Brasil, com o passar dos anos essa desconfiança nas instituições democráticas se converte em um forte sentimento de saudosismo da ditadura. Esse sentimento passa a ser instrumentalizado politicamente e é o que, juntamente com outros fatores, como por exemplo o antipetismo, leva ao surgimento de uma nova extrema-direita que tem na figura de Jair Bolsonaro seu principal nome. Até então um político pouco relevante do chamado “baixo clero”, Bolsonaro é eleito presidente da República. Seu discurso antissistema (mesmo sendo ele próprio fisiológico desses sistema, com tantos mandatos parlamentares no currículo) e apologético ao autoritarismo conquistou as mentes de muitos que, descrentes das instituições democráticas, possivelmente tinham na frustração com a agenda neoliberal as raízes dessa descrença, ainda que nem sempre se perceba a coincidência entre os diferentes fatores geopolíticos aqui citados e a conjuntura que os une.

Portanto, para algumas pessoas que viveram os tempos da ditadura militar e que, a despeito do autoritarismo, encontraram naqueles tempos possibilidades como acesso a moradia, a educação e outros itens básicos, é possível que, em contraste com o atual estágio do capitalismo neoliberal predatório, afirmem e acreditem que “antigamente é que era bom”. O erro entretanto está na identificação do problema. E, quando se erra na identificação do problema, erra-se na propositura da solução. A democracia não é a culpada, mas sim a solução, pois é por meio dela que a sociedade pode lutar por representativdade nas instituições, para que as mesmas não continuem capturadas pelo capital e servindo de artífices do receituário neoliberal. Receituário contra o qual a escolha protofascista de Jair Bolsonaro não apresenta nenhuma solução concreta. Pelo contrário, o apologista da ditadura busca se alinhar ao neoliberalismo almejando uma governabilidade garantida pelos detentores de capital e de poder.


Referências:

MOISÉS, José Álvaro. A desconfiança nas instituições democráticas. Revista Opinião Pública, Campinas, v. XI, n. 1, março, 2005, p. 33-63. Disponível em <https://www.scielo.br/j/op/a/xymhYmLZdKYkpmDbwqzj44S/?format=pdf&lang=pt >


SANTOS, Adriano Pereira. O Brasil é socialista? In: Revisionismos: a universidade esclarece. São Paulo, Mentes Abertas, 2020.


SOUZA, André Luiz Coelho. O papel da sociedade e das instituições na definição das crises políticas e quedas de presidentes na América Latina. Monções, Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v 2, n. 3, jan/junm 2013. Disponível em: < https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/2694/1539>


[1] https://www.politize.com.br/neoliberalismo-o-que-e/


[2] https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2019/03/23/bolsonaro-no-chile-como-a-escola-de-chicago-transformou-pais-latino-americano-em-laboratorio-do-neoliberalismo.htm


[3] https://brasilescola.uol.com.br/geografia/consenso-washington.htm


[4] https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/consenso-washington.htm


[5] https://www.politize.com.br/neoliberalismo-o-que-e/


[6] https://agencia.fiocruz.br/consolida%C3%A7%C3%A3o-das-leis-trabalhistas-criada-por-vargas-completa-70-anos


[7] https://www.politize.com.br/estado-de-bem-estar-social-e-estado-liberal-diferenca/





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