quarta-feira, 1 de junho de 2022

1 ano sem Maurício Tuffani: um gigante da divulgação científica, para além das redes sociais


No último dia 31 de maio de 2022, um ano se completou da morte do jornalista e divulgador científico Maurício Tuffani. Lembro-me bem da data. Eu estava justamente começando a escrever um artigo para o seu site, O Direto da Ciência, quando entro nas redes sociais e fico sabendo que Tuffani acabara de falecer, aos 63 anos, após sentir-se mal em sua casa, na Zona Norte da capital paulista. Tomei um susto. Um grande susto. Não esperava aquela morte repentina de alguém que eu admirava tanto, sem que eu sequer tivesse tempo de conhecê-lo pessoalmente.

Tive poucas oportunidades de falar com ele, por telefone. Mas foram momentos que considero preciosos. Lembro-me da primeira vez em que ele me telefonou. Eu havia enviado um artigo para o Direto da Ciência, como colaborador, e ele ligou para elogiar o material e dar uma previsão de publicação. Mais do que isso, se desculpou pela demora em me dar retorno. Nem precisava, porque eu não esperava retorno, menos ainda por meio de uma ligação. Nesses tempos apressados, falta de retorno é algo frequente.

O telefonema, o elogio, o pedido de desculpas desnecessário, tudo isso causou em mim uma percepção bastante positiva de Tuffani como uma pessoa bem atenciosa e gentil. Ninguém nunca havia me ligado para falar a respeito de um artigo meu. “Por que um jornalista renomado como ele, com um projeto tão relevante como o Direto da Ciência, se daria ao trabalho de telefonar para elogiar e dar algum tipo de satisfação a um Zé Ninguém igual a mim, com quase nada publicado?”, pensei. Pois ainda há esse detalhe: Maurício Tuffani foi um dos primeiros profissionais a abrir espaço para o meu trabalho em um grande veículo de divulgação científica.

A segunda ligação foi um pouco mais constrangedora, mas nada que fosse incontornável. Eu estava na fila de uma loja, segurando um monte de produto, quando toca o meu celular. Como um bom residente no estado do Rio de Janeiro, quando olho a tela do celular e vejo que a ligação vem de São Paulo, já penso que é telemarketing e atendo ressabiado (na maioria das vezes nem atendo). Para piorar, demorei a ouvir meu interlocutor do outro lado da linha, o que me fez perder a paciência: “alô, alôôô!”, gritava eu na fila, aborrecido e desajeitado com os produtos. Até que finalmente ouvi a voz de Tuffani, se apresentando e falando sobre um mais recente artigo que eu havia enviado para publicação em seu site: elogio, previsão de publicação etc. A mesma atenção, o mesmo cuidado. Aí eu que tive que me desculpar pela recepção não muito simpática ao telefone. Se bem que ele nem aparentou ter notado isso.

Em tempos de velocidade, de dispersão, de infodemia [1] e desinfodemia [2], fazer uma ligação para um desconhecido prestando-lhe esclarecimentos é um baita gesto de consideração, atenção e respeito. Não é todo mundo que se dá a esse trabalho.


Mas quem foi Maurício Tuffani?

Com sólida formação acadêmica e trajetória no jornalismo, Maurício Tuffani passou pelos jornais do Grupo Estado (O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde) a partir do fim da década de 1970, ocasião em que estudava Matemática e Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e dava aulas de matemática e física para o ensino médio. Especialista na cobertura de ciência, meio ambiente e ensino superior, na década de 1990, foi repórter, colunista e editor de ciência na Folha de S. Paulo. Entre 2000 e 2003, foi redator-chefe e editor-chefe da revista Galileu. Em seguida, foi editor-executivo de portais do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da ONU no Brasil. Nos anos de 2015 e 2016, assumiu o cargo de editor-chefe de outra grande revista brasileira de divulgação científica, a Scientifc American Brasil, e, ainda em 2016, fundou o site Direto da Ciência, por meio do qual o conheci.

Tuffani também trabalhou nos setores de comunicação de instituições públicas, como a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e a Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp), onde fundou a revista Unesp Ciência [3].

Sua morte foi amplamente repercutida e lamentada no meio científico e da divulgação científica: "Todos da equipe do Jornal da Unesp estão desolados pela partida do nosso querido amigo, jornalista e editor-chefe, Maurício Tuffani (…) um dos mais respeitados jornalistas de ciência do Brasil, um intelectual, além de um excelente colega de trabalho. Fará muita falta. Nossos sinceros sentimentos a todos os familiares e amigos.", publicou o veículo, em nota.

A Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC) também publicou uma nota lamentando a sua morte. “Era um grande amigo e parceiro da APqC. Em 2018, a convite da entidade, promoveu uma palestra aos pesquisadores intitulada ‘Os desafios da visibilidade da pesquisa científica’, realizada no Instituto Biológico, em São Paulo. Na ocasião, afirmou que ‘em tempos obscurantistas, cuja tendência é desqualificar a informação científica, os cientistas têm o dever de sair de sua zona de conforto e dar as caras nas mídias sociais para ajudar a combater as chamadas fake news e tornar acessível o resultado de suas pesquisas’” [4].

Nas redes sociais também houve muita homenagem de colegas de trabalho. O repórter da TV Globo Álvaro Pereira Júnior disse: "Maurício Tuffani era um nome estelar do jornalismo, caso muito raro de quem abraçou o jornalismo de ciência e meio ambiente como uma espécie de sacerdócio, como causa. Gentil, solidário." Certamente Álvaro Pereira Júnior se referiu a mesma gentileza que eu também pude perceber em apenas duas ligações, em conversas muito curtas com Tuffani.

"Um dia triste para o jornalismo de ciência, que perde uma referência, um cara genial, de olhar certeiro e capacidade de análise rara. Que seu legado nos ajude a fazer com que a informação qualificada em ciência seja sempre a tônica da divulgação científica, mais importante hoje do que nunca. Obrigado por tudo, Tuffani.", declarou a Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), nas redes sociais.


Controvérsias

Mas as redes sociais não são um mar de rosas (não mesmo!) e no mesmo dia em que soube, por meio delas, da morte do jornalista (o primeiro susto), tomo ainda o segundo susto, ao ler um post com uma crítica bem negativa a Tuffani, que acabara de falecer. Além da falta de timing da postagem (“A decência humana recomenda esperar o cadáver esfriar antes de começar a chutar”, rebatia um outro importante jornalista brasileiro de ciência, nos comentários do post), a crítica tinha viés notoriamente político. E é curioso como no debate político (inclusive no debate político-científico e na própria divulgação científica) aqueles que mais chamam atenção para viéses políticos alheios estão, eles próprios, encharcados de ideário político, ainda que mal disfarçado por um verniz de isenção e neutralidade (vide o Movimento Escola “sem Partido”, exemplo mais literal de todos). Esse verniz pode vir em forma de tecnocracia, em debates sobre gestão e políticas públicas, ou de ceticismo e objetividade, em assuntos de ciência.

Não vou aqui detalhar a crítica do post feita a Maurício Tuffani, pois seria dar espaço a quem não o merece., mas a cito por duas razões: primeiro, para lembrar que unanimidade não existe e que Tuffani não foge à regra. Ainda mais em tempos de redes sociais, que parecem engajar mais pelo conflito do que pela concordância. Segundo, porque a crítica me levou a um exercício que me fez refletir sobre o quanto é necessário criarmos e aprimorarmos mecanismos de filtragem a respeito dos conteúdos espalhados pela internet, dada a quantidade de formadores de opinião e “intelectuais de redes sociais”.

Lendo as notícias sobre a morte de Tuffani, me dei conta da trajetória robusta desse profissional que nos deixou, iniciada no fim dos anos 1970, passando por polos produtores de ciência, instituições de renome e grandes redações. Por curiosidade, fui pesquisar sobre o autor da postagem ácida para conhecer seu currículo, trajetória profissional, portfólio. Não me surpreendeu perceber que era alguém que não tinha nada a oferecer para além das redes sociais com uma fanpage panfletária disfarçada de cética. Não consegui deixar de fazer comparações entre Tuffani e o autor da nota vergonhosa com seu currículo medíocre, repleto de quase nada e salpicado com irrelevância.

A crítica fora motivada pelo perfil editorial do Direto da Ciência, que era, de fato, um veículo de divulgação científica com um espaço maior para as decisões políticas, bastidores e conflitos internos envolvidos nos assuntos científicos [5] quando comparado a outros veículos que temos por aí. Essas coisas fazem parte do jogo e não dá para fazer de conta que elas não existem (basta pensar nos impactos das decisões políticas no enfrentamento da pandemia e todo o negacionismo estimulado por gestores públicos). E Maurício Tuffani era um jornalista que sabia que o exercício da divulgação científica envolve muito mais do que reportar descobertas, mas também apresentar temas que deem a ideia da inserção da ciência no cotidiano, de como ela impacta na vida das pessoas e de como o jogo político interfere em sua produção.

E aí não tem jeito. Claro que as críticas vão surgir. Ainda mais em tempos de acirramento das tensões políticas. A questão é, além de analisarmos os argumentos das críticas, sabermos identificar de onde elas partem, quais os alinhamentos políticos-ideológicos de seus responsáveis e questionar todos aqueles que se autoproclamam “neutros”, “isentos”, “objetivos”, “racionais” e “céticos” quando flagrantemente eles não são nada disso. È o que eu chamo de puxar o fio de um novelo sociopolítico que contextualiza muita coisa e desbarata as pretensões de objetividade de muita gente.

Poucas semanas após Tuffani nos deixar, o site Direto da Ciência saiu do ar, tornando indisponível um acervo riquíssimo (ao menos até onde tentei acessá-lo) e uma lacuna na divulgação de ciência com ênfase em política científica e na relação entre os contextos políticos e científicos. A perda desse acervo me fez pensar no quanto é volátil e inseguro esse mundo digital da internet, de redes sociais, de núvens e de frágeis HDs que frequentemente dão problema. Um desafio e tanto para historiadores, arqueólogos e, por consequência, para a memória social no futuro.




Para além das redes sociais

Tuffani teve uma trajetória que já era robusta antes das redes sociais e que permaneceu robusta para além delas. Em tempos em que qualquer um com uma conta no Facebook e Twitter ou um canal no Youtube diz qualquer coisa e faz um estrago danado, julgo importante ressaltar a solidez dessa trajetória, como é importante também sugerir mecanismos de filtragem para o que consumimos de informação nas redes. Precisamos usar como filtro aquilo que os produtores de conteúdo têm de realizações para além da internet. Precisamos nos interessar pela trajetória, obra, currículo das personalidades digitais para além do mundo digital. Ainda é importante ver se a pessoa tem alguma formação ou experiência profissional ligada ao conteúdo que aborda. Não é uma fórmula perfeita, mas fica aqui apenas a sugestão. Pois é impressionante como a internet está cheia de gente que só tem relevância nela própria, com muito pouco ou nada a demonstrar de si mesma no mundo não virtual. Falar nas redes (inclusive falar bonito) é fácil. Difícil é ser um Maurício Tuffani.

Ao noticiar o falecimento de Tuffani, o Jornal da USP o chamou de “Gigante do jornalismo e da divulgação científica” [6]. Por todo o exposto, pelos tempos em que vivemos e pelos desafios dos fluxos de informação e, mais especificamente, de informação em ciência, acho necessário acrescentar que ele foi um gigante do jornalismo e da divulgação científica para além das redes sociais! 

Tuffani nos deixou em meio à pandemia, justamente no momento em que a divulgação científica do Brasil vivia possivelmente a maior efervescência de sua história. Sua foto em seu perfil do Facebook, na ocasião de seu falecimento, era a de um jacaré, um deboche contra uma declaração negacionista do presidente da República.

Não pude conhecer o Maurício Tuffani pessoalmente. Mas fica aqui o meu muito obrigado a ele, em forma de artigo.



domingo, 10 de abril de 2022

Marighella vence prêmio Sesc: cinco breves considerações sobre o filme

O filme Marighella continua dando o que falar e sendo laureado. Na última semana, o longa-metragem brasileiro foi o grande premiado do Festival Sesc Melhores Filmes [1], vencendo nas categorias de melhor filme nacional (público e crítica), melhor diretor (Wagner Moura) e melhor ator (Seu Jorge, que interpreta Marighella). A entrega da premiação aconteceu na última quarta-feira (6 de abril), transmitida pelo Youtube. Maria Marighella, neta do líder revolucionário, recebeu o prêmio representando a equipe de produção do filme. O festival prossegue até o dia 27 de abril, com  a exibição de diversas produções que concorreram nesta 48ª edição que definiu os melhores trabalhos de 2021.    

Marighella é um filmaço! Uma obra que certamente veio para ficar e será lembrada na cinematografia brasileira sobre os períodos ditatoriais do país, juntamente com Olga (2004) ou O que é isso, companheiro? (1997). Tive a oportunidade de assistir ao filme no cinema, mas não de escrever sobre. Farei agora não uma crítica, mas uma breve abordagem de cinco pontos que julgo interessantes sobre a produção, que envolvem aspectos técnicos, narrativos e de recepção (o modo como essa história foi recebida por público e crítica). Minhas impressões:

Maria Marighella recebe o prêmio Sesc

1- A ousadia de Wagner Moura como diretor.  Primeiro, pela escolha do tema em um momento como este, de recrudescimento do autoritarismo e ascensão da extrema-direita no Brasil. Escolha necessária, mas ousada. Ainda mais para um estreante na direção. Obviamente, ao falar sobre esse recorte do passado, Moura quer tratar também do tempo presente. Segundo, por conta de algumas escolhas técnicas, como estrear na direção de um longa-metragem logo com 2h40m de duração, quase todo com câmera na mão e steadicam [2]. A opção por esses dois movimentos de câmera reforça a tensão de algumas cenas de ação, como trocas de tiro e perseguições. O longa-metragem mostra logo de início ao que veio e já começa com um plano-sequência excelente [3], fazendo muito bom uso dos movimentos de câmera citados e com uma trilha sonora que combina tanto com o ritmo do plano-sequência quanto com o filme em geral (“Monólogo ao pé do ouvido”, de Chico Science e Nação Zumbi). As escolhas ousadas fazem a premiação de Wagner Moura como melhor diretor de 2021 ser  mais do que merecida.

2 - A ingenuidade dos personagens – Marighella e cia – sobre o poder da comunicação, achando que se conseguissem ter suas mensagens difundidas pela imprensa iriam convencer o povo a aderir à luta. Marighella e seu grupo pareciam acreditar que o povo estava inerte porque não sabia o que estava acontecendo. Claro que o papel da imprensa, tanto a conivente quanto a coagida, era fundamental para a sustentação do regime ditatorial. Mas não era só isso. Hoje há muita informação circulando, inclusive sobre o que aconteceu naquela época, e mesmo assim muita gente defende a ditadura militar. Nunca foi somente uma questão de falta de comunicação, de “saber o que está acontecendo”, mas algo que envolve valores, ética, viés de confirmação, ideologia, cultura etc. As cartas revolucionárias transmitidas pela imprensa da época devido à ação dos grupos guerrilheiros eram logo sucedidas pela programação normal, de encobrimento ou apologia ao regime. Em tempos de rede social, ver os guerrilheiros terem aquele nível de esperança em esparsos comunicados de rádio/TV é bastante interessante.

3- Quase todos os personagens trazem um conflito entre a vida de guerrilha e a vida cotidiana em família. Esse conflito entre lutar ou “viver normalmente” para mim foi a coisa mais marcante do filme, embora tenha sido pouco destacado pela crítica. Marighella, seus companheiros de luta, o jornalista insurgente contra a ditadura, todos carregam esse drama. Guerrilheiros ou não, muita gente passa em maior ou menor grau por esse conflito. “Até que ponto vou viver normalmente como se nada estivesse acontecendo?”, “por que deixamos tudo isso acontecer sem fazer nada?”, quem nunca se perguntou essas coisas, ontem e hoje? Aqui é marcante o modo como, ao tratar de um recorte do passado, o diretor quer dialogar com o momento presente.

4- Sobre a recepção do filme: muitos bolsonaristas aderiram a um movimento organizado para derrubar a nota do longa-metragem no IMDb, a ponto de o site fazer mudanças no cálculo da nota [4]. Isso é bastante representativo e icônico sobre esse grupo: uma incapacidade de dissociar aspecto técnico de aspecto político. Não há minimamente interesse nas opções técnicas/estéticas do filme e certamente muitos nem o assistiram, resumindo tudo à divergência ideológica. Por que eu acho isso representativo e icônico? Porque é exatamente assim que a extrema-direita brasileira age com historia: não se interessam por historia e por aspectos técnicos da historiografia, nem entendem muito sobre esses aspectos, resumindo tudo à dimensão política, desconsiderando possibilidades nas dimensões científica, técnica, metodologica e epistemológica. “Condiz com a minha visão política? Então é a verdadeira história. Não condiz? Então é manipulação de professor doutrinador”. O mesmo modus operandi vale contra detratados como Paulo Freire e a pedagogia. E já que estamos falando sobre cinema, vale lembrar de Leni Riefenstahl, cineasta de Hitler e do nazismo, que dirigiu clássicos como O triunfo da vontade (1935) e Olympia (1938). Seu trabalho foi fundamental no desenvolvimento da linguagem audiovisual, principalmente no gênero documentário. Faria sentido negar a relevância de Riefenstahl para o cinema por conta da dimensão política? Fica a questão, mas minha resposta é não!

5- Ainda quanto à recepção, por parte da crítica especializada o filme foi questionado a respeito de certa falta de precisão histórica, optando por deixar de contar muita coisa e por não usar os nomes reais daqueles que inspiraram certos personagens da trama. De fato, vários personagens que vemos em Marighella, embora inspirados em pessoas reais, tiveram nomes trocados e históricos modificados. O personagem “Branco” (Luiz Carlos Vasconcelos) é inspirado no jornalista e líder comunista Joaquim Câmara Ferreira; o personagem Lúcio (Bruno Gagliasso), no delegado Sérgio Paranhos Fleury; Herson Capri dá vida a um jornalista inspirado em  Hermínio Sacchetta, diretor de redação do Diário da Noite; e por aí vai. Alguns críticos não gostaram e, dentre as alegações, disseram que isso seria um tipo de apagamento de figuras históricas importantes [5] [6] [7]. Considero a crítica pertinente, mas em Marighella parece que a opção de Wagner Moura foi valorizar cenas de ação (economizando nas explicações históricas) e pôr o personagem principal em primeiríssimo plano, com os outros personagens (em geral muito bem caracterizados e interpretados, por sinal) compondo a trama sem concorrer com o Marighella de Seu Jorge. Será que seria uma boa ideia, por exemplo, nos tempos atuais em que tantos perderam a vergonha de defender a ditadura militar e a tortura, entregar nominalmente e literalmente um Sérgio Fleury como personagem de um filme de ação para ser reverenciado por uma ala reacionária da cultura pop? Marighella, por conta de suas tantas simplificações históricas, é menos um filme para retratar a história e mais um convite a estudá-la e conhecê-la, fazendo o convite pela emoção, identificação e engajamento. Há boas fontes por aí para quem quiser saber mais sobre as referências históricas nas quais o filme se inspirou [8] e sobre a vida de Carlos Marighella para além do filme [9].


Referências:

[1] https://melhoresfilmes.sescsp.org.br/

[2] http://www.monsterdigital.com.br/Blog/movimentos-de-camera/

[3] https://www.aicinema.com.br/conheca-5-filmes-e-cenas-incriveis-feitos-em-plano-sequencia/

[4] https://www.omelete.com.br/filmes/marighella-imdb

[5] https://www.youtube.com/watch?v=lfQoSKB6BfQ&t=345s

[6] https://www.youtube.com/watch?v=PCl9AqY5Kkw

[7] https://www.youtube.com/watch?v=zpm9UuIZksk

[8] https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2021/11/marighella-os-personagens-e-momentos-historicos-retratados-no-filme.html

[9] 

https://anchor.fm/historia-fm/episodes/016-Marighella-o-guerrilheiro-que-incendiou-o-mundo-e97os7?fbclid=IwAR06TBFo3dSA4CNSo_vA6LeB6T48h9goFULF1yDmSaJG9AmmWw66SxO4xSg  


segunda-feira, 21 de março de 2022

Tempo de pesquisa X tempo de engajamento digital: a história de um plágio que tem dado o que falar

 


Desde a primeira vez que bati o olho na página de João Marques, influenciador digital, estudante de psicologia e um tipo de coach detox de “masculinidade tóxica” (embora ele não use exatamente esses termos), confesso que o achei com um pé na picaretagem. Em seu conteúdo, basicamente, as mulheres são sempre vítimas, e os homens estão sempre errados. Um maniqueísmo caricato difícil de caber em psicologia seria. Tudo soava militância disfarçada de psicologia que diz aquilo que um certo público-alvo quer ouvir. Se João Marques se promovesse apenas como militante, como integrante de algum tipo de coletívo político-identitário, menos mal. Mas ao enfiar a psicologia na história, era de se esperar um rigor científico a mais.

Por exemplo, em uma de suas postagens, João Marques se lança a explicar o desejo dos homens por mulheres mais novas [1]. Sua explicação fica exclusivamente nos aspectos comportamentais, e a raiz do “problema” estaria na “construção social”, na “estrutura patriarcal” e mais outros jargões bastante presentes em discursos militantes. Marques chega a afirmar categoricamente que qualquer tentativa de explicação a respeito da preferência de homens por mulheres mais jovens a partir de predisposição natural e biológica é “uma bobagem”.

Só que muito provavelmente não é. Longe de querer propor um determinismo biológico, também não dá para partir para um extremo oposto e arrancar a biologia da química da atração. É bem verdade que os aspectos sociais são muito preponderantes nos modos como homens e mulheres se relacionam e assumem papéis de gênero – sobre isso, recomendo o livro “Testosterona Rex”, eleito o melhor livro de ciência de 2017 pela Royal Society, escrito pela psicóloga Cordelia Fine [2] – mas certamente a preferência dos homens por mulheres mais jovens é em grande parte um reflexo da seleção natural e guarda uma correlação com fertilidade e idade mais propícia para a reprodução: ao longo de gerações, homens que preferiram mulheres jovens fizeram a escolha mais acertada do ponto de vista reprodutivo e, logo, da perpetuação da espécie. A discussão sobre os limites do biológico e do social é muito longa e um exemplo de abordagem equilibrada são esses vídeos do paleontólogo e divulgador científico Pirulla [3] [4].

Por ironia do destino, nas últimas semanas o influenciador João Marques sofreu um contragolpe em seu feminismo de resultado, ao ter sido descoberto enquanto plagiador de uma MULHER [5]. A vítima foi a pesquisadora, psicologa, professora da UnB e pós-doutora em psicologia clínica Valeska Zanello. Aparentemente, o influenciador plagiou mais coisa além do trabalho de Valeska. Vindo a público, o plágio rendeu muita polêmica e discussão. João Marques chegou a fazer uma retratação pública, em seguida apagada. Ao longo do imbróglio, o estudante de psicologia, que tinha mais de 300 mil seguidores no Instagram, perdeu mais de 100 mil; enquanto Valeska, que tinha em torno de 25 mil seguidores, ganhou cerca de 100 mil e com justiça.

Isso leva a uma questão importante: o modo como as redes sociais viraram um encurtador de caminho para pessoas que almejam reconhecimento intelectual, mas acham muito demorados e rigorosos os parâmetros científicos da área acadêmica. O meio digital dá retorno mais rápido e dá mais dopamina que o meio acadêmico. Isso acaba seduzindo muita gente. O trecho abaixo, retirado de uma das notícias sobre o plágio, mostra o descompasso entre tempo de pesquisa e tempo de engajamento em rede social:

Há 25 anos estudando a saúde mental das mulheres, a pesquisadora e psicóloga Valeska Zanello passou um ano dedicando 15 horas do seu tempo por dia, de domingo a domingo, para escrever o livro "Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação". Colocou nele três anos de material coletado. E, depois de todo o esforço, conta que viu sua obra plagiada pelo estudante de psicologia João Marques, que faz sucesso no Instagram falando sobre comportamentos masculinos.

A pesquisa aprofundada demanda tempo e longos períodos de silêncio para se absorver conteúdo, conhecimento e informação. Ao contrário, as redes sociais priorizam a superficialidade, a rapidez, e odeiam o silêncio. Para obter engajamento e a dopamina dos likes e do aumento de seguidores, é preciso estar sempre produzindo, dizendo coisas, trabalhando para plataformas como Facebook, Youtube e Instagram.

Outra contraposição clara entre meio acadêmico e meio digital está em seus processos de validação. Na área de pesquisa, é preciso seguir padrões rígidos de escrita, como as regras da ABNT, e submeter a produção ao processo conhecido como “revisão por pares”, em que profissionais/pesquisadores de uma mesma área de pesquisa ou áreas correlatas avaliam a produção submetida em busca de erros, fragilidades metodológicas ou apenas para propor aprimoramentos. Um processo trabalhoso e por vezes demorado. Já nas redes sociais, quem produz um conteúdo, em regra, não precisa submetê-lo a ninguém. Basta publicá-lo e pronto. A “validação” não se dá pelo expertise de corretores/avaliadores, mas pela própria audiência, pela quantidade de seguidores que um determinado perfil consegue obter.

Muitas pessoas já perceberam isso e optaram pela ligeireza. Para que gastar tanto tempo submetendo o meu próprio conteúdo a processos de validação tão demorados se eu posso colocá-lo diretamente nas redes, investir na forma, na embalagem, no impulsionamento, ganhar seguidores e obter (auto)promoção? Na esteira da opção pela rapidez, a coleta superficial dos dados e o encurtamento da análise tornam-se atalhos e, por vezes, o plágio também. "Isso tem muito a ver com a sociedade do espetáculo que quer resultado imediato. E parece que é comum. É para a gente pensar", diz Valeska, a vítima plagiada.

Outro atalho sedutor da produção de conteúdo nas redes sociais é embalar o conteúdo produzido de acordo com o gosto do freguês, como forma de aumentar o engajamento e o impulsionamento do material. Isso é um problema, porque aos poucos o produtor torna-se refém de seu público. Mais uma vez, isso é algo que contraria a pesquisa científica séria, já que a produção de conhecimento, quando feita com ética e responsabilidade, não tem necessariamente que agradar a ninguém (em alguns casos, ela vai desagradar).

Nesse sentido, por exemplo, ao enquadrar a atração que homens sentem por mulheres jovens como apenas machismo e um problema comportamental, é possivel que João Marques esteja mais preocupado em dizer o que seu público-alvo quer ouvir, em agradar o seu target, do que em divulgar psicologia séria. Isso reforça a narrativa de que o homem está sempre errado e precisa sempre se desconstruir, o que facilita o influenciador a vender seu combo, que inclui palestras e trabalhos de grupo para desconstrução da “toxidade masculina”. Do contrário, se não há algo a se desconstruir, há menos o que se vender.

Nada disso significa que o estudante de psicologia não possa se tornar um bom divulgador de conteúdo científico, mas ele e todos nós, divulgadores em geral, devemos estar atentos às armadilhas da velocidade das redes e à sedução da autopromoção. E cabe à divulgação científica o desafio de buscar soluções para o descompasso entre o tempo de pesquisa e o tempo de engajamento nas redes sociais imposto pela lógica dos algorítmos, vorazes por produção e que odeiam o silêncio.


Referências:

[1] https://www.instagram.com/p/CYZ4EvDMtGV/

[2] https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/cordelia-fine-persegue-o-implacavel-testosterona-rex-em-seu-novo-livro-153235/?fbclid=IwAR00M42OpIfZeWO6deeeTClCuMN78lbuzhqSBSvSsdfVyF9YMkkEGOJAE2o

[3] https://www.youtube.com/watch?v=2igmSurytzA

[4] https://www.youtube.com/watch?v=CzSthNCxbWE

[5] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/03/04/pesquisadora-valeska-zanello-aponta-plagio-em-post-de-joao-marques-podre.htm?fbclid=IwAR3xekrAl4hekj-X9XSx5jWkC2Ayhz5QHx5LOkmYmZwGAw_oTbYl98MM6hk

sábado, 19 de fevereiro de 2022

“Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”: o que influenciadores digitais podem aprender com o tio Ben?

História em quadrinhos também é cultura. Pelo menos para mim. Faz parte da minha infância e adolescência, da minha formação intelectual (por que não?) e do meu corpo, porque até tatuagem baseada em HQ eu tenho. Uma história fundadora do Homem-Aranha enquanto personagem envolve Benjamin Parker, tio de Peter Parker, o “tio Ben”. Peter Parker ainda estava começando a explorar seus poderes recém-adquiridos por conta de uma picada de uma aranha radioativa quando viu um ladrão sendo perseguido por um guarda de segurança. Mesmo podendo pegar o ladrão, Peter nada faz, por entender que, apesar de seus poderes, lutar contra o crime não era seu papel. O ladrão acaba fugindo.

Pouco depois, tio Ben é morto por um ladrão. Peter agora resolve usar seus poderes para capturar o assassino de seu tio. É ai que ele descobre, para seu próprio horror, que seu tio foi morto justamente pelo mesmo ladrão que havia deixado escapar. Tomado pelo sentimento de culpa, ele decide que dali em diante lutaria, sim, contra o crime, movido pelo lema que aprendeu com seu tio: “Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”. É aí que nasce o Homem-Aranha enquanto super-herói.

Mas o que youtubers, podcasters e influenciadores digitais em geral têm a aprender com o tio Ben? Sem dúvida, muita coisa. Nas últimas décadas as mídias digitais cresceram bastante e democratizaram o espaço no debate público. Muita gente que estava limitada a ser receptora no contexto das chamadas “mídias tradicionais” (rádio, TV, jornal impresso…) foi alçada, por meio da internet, ao papel de emissora, opinando, influenciando fazendo valer suas posições e, lamentavelmente, também desinformando.

Esse novo cenário apresenta novos problemas. Um deles, muito bem colocado por Bolívar Torres, é uma “crise de expertise” [1], ou seja, muita gente agora pode falar sobre muita coisa, mas nem todas essas pessoas são, de fato, qualificadas para tal fim. Isso abriu espaço para um “achismo” que, aos poucos, parece ter feito grande parte da audiência atual ter dificuldade em diferenciar o que é opinião do que é ciência. Ou, nas palavras do professor Eugênio Bucci, “O senso comum não diferencia mais o que é um juízo de valor e o que é um juízo de fato” [1].

Intrinsecamente relacionado a esse problema, há um outro, que é uma certa incompreensão dos influenciadores digitais a respeito da responsabilidade que eles adquiriram neste novo contexto da comunicação digital. E é aí que entra a frase do tio Ben: “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. A internet deu voz ou ampliou a voz dessas pessoas, mas isso tem um custo – a responsabilidade com o que se diz – ou ao menos deveria ter esse custo!

Para ficarmos em um “case” que tem sido bastante comentado, o Flow Podcast é um bom exemplo dessa esquiva dos influenciadores digitais em relação à responsabilidade enquanto comunicadores. Bruno Aiub, o Monark, foi afastado do Flow após defender que no Brasil deveria existir um partido nazista. Nem de longe acho que Monark seja nazista e acusá-lo disso seria desonestidade intelectual. Trata-se, sim, de um dos mais icônicos exemplos de pessoas que se tornaram comunicadoras para amplas audiências, entretanto, sem nenhum preparo para o debate público. Além de despreparado, de ser orgulhosamente ignorante, Monark e os demais produtores do Flow por diversas vezes levantaram a bandeira da informalidade, do despojamento e do descompromisso para, consciente ou inconscientemente, se esquivarem da responsabilidade e dos impactos dos conteúdos que o podcast veicula. Essas duas características – a ignorância orgulhosa e a negação da responsabilidade – fazem do Flow e de Monark sinais inequívocos dos tempos.

Quanto à ignorância orgulhosa, Lênio Streck escreve um texto divertido, direto e assertivo [2], tomando de empréstimo o termo “fundãocracia”. Usado por Antônio Prata na Folha de São Paulo. Fundãocracia, nas palavras de Streck, seria o cenário atual em que “os perdedores, os burros, os caras do fundão da classe da oitava série acabam se dando bem e se transformam em ‘comunicadores’. Ou políticos.”


Seria Monark um Jô Soares do Mundo Bizarro?

Gostaria de ilustrar o problema fazendo uma comparação entre a comunicação digital atual e o tempo das “mídias tradicionais”. Na minha infância, o entrevistador mais popular do Brasil era Jô Soares, que falava uns seis idiomas (hoje em dia deve estar falando uns dez). Um comunicador bem culto, autor de livros que renderam a ele o título de imortal da Academia Brasileira de Letras (Jô também é membro da Academia Paulista de Letras). Na Rede Globo, o bastão de principal apresentador foi há alguns anos passado por Jô para Pedro Bial, mas aí veio a explosão das mídias digitais e redes sociais.

E então emergiram figuras como o Monark, alçado ao posto de entrevistador mais bombado nos últimos anos. Não um nazista, mas um moleque com um pensamento raso sobre os assuntos que frequentemente se propõe a abordar (direito, filosofia, economia, sociologia, política etc). E o que é pior, por vezes ele demonstra certo orgulho dessa ignorância. Certa vez ele tuitou: “Eu acho que vc aprende muito mais sobre filosofia conversando, pensando, lendo, vendo vídeos, do que indo à faculdade”. Além de não ter parâmetro para fazer tal comparação (porque ele próprio não foi à faculdade), seu comentário é reflexo de um pensamento anti-intelectual e antiacadêmico que tem muito lastro nas mídias digitais. Depois de receber muitas críticas (que bom!), ele tentou remendar: “só deixando claro, ‘conversando, pensando, lendo, vendo vídeos’ sobre filosofia, eu digo”. Ah, sim. Agora sim (só que não).

É bastante exemplificativa a discussão que Monark teve com a advogada Gabriela Prioli, sobre a necessidade de fundamentar as opiniões com dados e evidências [3]. A relutância de Monark em entender isso foi enorme. “É muito chato não poder conversar, falar sobre o que eu penso, porque eu não tenho dados e estatísticas”, disse ele. Pois é, Monark, mas comunicação com o grande público é isso aí. Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidade. É preciso ter cuidado com a “opinião” que se emite e buscar ao menos o mínimo de fundamento para ela.

Para continuarmos na comparação entre Monark e Jô Soares, a coisa piora quando pensamos o quanto Monark, embora despreparado, adota com frequência um tom confrontador, menos comum aos programas de entrevista do passado, mas bem comum nas “tretas” de redes sociais. Mais um exemplo do quanto o Flow e Monark são sinais dos tempos. Não que antigos apresentadores, como Jô ou Marília Gabriela, não confrontassem seus entrevistados, mas a confrontação, o duelo retórico, a batalha discursiva (tantas vezes esvaziada de dados, estatísticas e evidências) viraram lugar-comum. 

Mas há um problema: se você é um entrevistador e possui um tom conflitivo em relação aos entrevistados, as chances de você se dar mal são grandes, pois normalmente os entrevistados entendem melhor o assunto da entrevista que você (justamente por isso estão sendo entrevistados). Vale tentar buscar um certo equilíbrio.

Nos quadrinhos dos Super-Homem (mais uma vez: história em quadrinhos também é cultura!), o Mundo Bizarro era um mundo com tudo invertido, falhado… bizarro. Aquaman não sabia nadar, e o Flash era “o homem mais lerdo do mundo” [4]. Comparar Monark e Jô Soares pode ser por sí só uma comparação bizarra, mas ao menos ajuda a pensar no debate público e na esfera pública no contexto da história recente das mídias. A conclusão me faz achar que as coisas pioraram.


A negação da responsabilidade

Tanto em relação à discussão com Gabriela Priolli quanto em outros casos, o Flow e Monark defenderam a bandeira da informalidade. A produção nem se posiciona como um programa de entrevistas, mas como um podcast de conversa, bem informal, como um papo de bar. Assistindo a um outro vídeo [5], de um canal do Youtube com quase 1 milhão de inscritos, que repercutiu a discussão entre Prioli e Monark em favor deste e contra Prioli, vê-se o quanto a audiência é capaz de comprar essa ideia de informalidade e descompromisso sem diferenciar que uma coisa é aquilo que um produtor de conteúdo diz de sua produção, ou seja, o modo como ele a apresenta, o modo como ele quer que essa produção seja vista; a outra é aquilo que a produção de fato é e os impactos que ela causa. Essa é uma discussão recorrente nas escolas de comunicação social e/ou em estudos que envolvem ética jornalística, mas que vem se perdendo no meio da profusão de conteúdo do mundo digital. O vídeo, aliás, é uma ode ao achismo, é um show de desprezo aos dados e à objetividade dos fatos, exemplificando o que Bucci disse sobre o senso comum não diferenciar mais o que é um juízo de valor e o que é um juízo de fato e o que Bolivar Torres expõe ser uma crise de expertise.

Quem melhor alertou Monark e a equipe do Flow sobre a responsabilidade de falar com milhões de pessoas, sobre as implicações que isso pode acarretar e sobre o quanto o argumento do despojamento pode ser falacioso, foi o compositor Rogério Skylab [6] [7]. Monark diz: “A gente gostaria que isso aqui fosse uma conversa de botequim. Não podemos ser só dois moleques idiotas?”. O compositor responde: “Você acha que está num botequim? Tem uma multidão vendo lá fora, cara! Querendo ou não, você sendo formado ou não, isso aqui é um programa jornalístico. A forma do programa é de conversa, mas é jornalístico. Tudo que se fala aqui tem uma responsabilidade”.

Se o interesse é levar um papo de botequim, o que não falta é botequim bom por aí. Claro que o interesse na verdade é monetizar, angariar patrocinadores e seguidores, mas ao mesmo tempo balançar a bandeira do despojamento para se isentar de estudar o que se diz e de responder por isso quando for o caso.

Esse é o desafio: convencer os influenciadores digitais, os produtores de conteúdo, os youtubers, os podcasters, a audiência e, no fim das contas, a sociedade em geral, da responsabilidade a respeito da comunicação social nesse mundo digital em que (quase) todos podem falar, ainda que nem todos entendam tão bem do que estão falando. E vale reforçar: história em quadrinhos também é cultura!


Referências:

[1]https://oglobo.globo.com/cultura/caso-monark-especialistas-explicam-por-que-achismo-esta-rivalizando-com-ciencia-o-saber-25390781

[2]https://www.conjur.com.br/2022-fev-17/senso-incomum-jenios-redes-formadores-opiniao-pobre-pais

[3] https://www.youtube.com/watch?v=7oDXXkA3BkI

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Mundo_Bizarro

[5] https://www.youtube.com/watch?v=q6HOjAMfkO8

[6] https://www.youtube.com/watch?v=REAzCtcsa3c

[7] https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/quando-skylab-alertou-monark-sobre-a-irresponsabilidade-de-suas-falas/




quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

América Latina: redemocratização, neoliberalismo e desconfiança na democracia

 


Antigamente é que era bom” ou “antigamente a vida era melhor”. São frases que comumente ouvimos por aí. Em geral, vale destacar a imprecisão (antigamente quando? Antigamente onde? Era melhor para quem?). Mas no Brasil existe uma grande chance daqueles que usam essas frases estarem a se referir à ditadura militar. Muitas pessoas hoje de meia-idade se mostram saudosas dos anos de chumbo e defendem que a vida era melhor naquela época. Mais do que isso, em um típico exemplo de “saudade do que não se viveu”, há jovens que repetem esse discurso sem nunca terem vivido os tempos de repressão da ditadura. Esse saudosismo de um passado idílico, romantizado, misturado a uma grande desconfiança a respeito das instituições, mais especificamente das instituições democráticas, é um dos fermentos que fizeram crescer uma extrema-direita protofascista que alçou ao poder no Brasil o presidente Jair Bolsonaro.

Aqui vamos analisar a crise das instituições públicas e a desconfiança nas instituições democráticas, mas com um foco bem específico, a América Latina e, mais ainda, o Brasil, com destaque para o papel do neoliberalismo na crise e na desconfiança. Para isso, partimos principalmente da leitura dos artigos “O papel da sociedade e das instituições na definição das crises políticas e quedas de presidentes na América Latina”, de André Luiz Coelho Faria de Souza, e “A desconfiança nas instituições democráticas”, de José Álvaro Moisés, ambos cientistas políticos. A ideia é partir dos dados e proposições dos textos para acrescentar novas proposições.

Enquanto Souza (2013) analisa crises políticas e quedas antecipadas (impeachments) de presidentes na América Latina no período imediatamente posterior à redemocratização, concluindo que o pior cenário para um mandatário seriam manifestações nas ruas pedindo a sua saída do poder ao mesmo tempo em que conflitos institucionais estivessem acontecendo” (SOUZA, 2013, p. 227) (algo que se viu no Brasil com Collor e, posteriormente à publicação do artigo, com Dilma, mas também em outros países, como a Bolívia, com as renúncias de Lozada e Mesa, todos que enfrentaram oposições nas ruas e nas instituições, como o congresso/parlamento); Moisés (2005) se concentra na ampla e contínua relação de desconfiança que os brasileirso têm com as suas instituições democráticas, ainda que, de modo geral, digam majoritariamente que apoiam a democracia. O autor se vale de diversos modelos teóricos para explicar a erosão da confiança dos cidadãos.


Da ditadura ao neoliberalismo

A experiência latino-americana de redemocratização, a partir da década de 70 e, no caso específico do Brasil, no meado da década de 80, tem uma característica peculiar: ela coincide com outros dois fatores geopolíticos e econômicos globais que influenciaram negativamente o bem-estar e a qualidade de vida dos trabalhadores, direta e indiretamente. O primeiro deles é a ascenção do neoliberalismo [1]. A doutrina, fortemente influenciada pelas ideias da Escola de Chicago [2], começou a ser posta em prática já em meados dos anos de 1970, no Chile comandado pelo ditador Augusto Pinochet. Mas foi na década de 1980, principalmente por meio do presidente americano Ronald Reagan e da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, que o neoliberalismo começa a ser disseminado pelo mundo.

No final daquela década, em 1989, as ideias neoliberais ficam ainda mais concretas e bem delineadas teoricamente quando o economista John Williamson publica um artigo com um conjunto de regras econômicas que ficariam conhecidas como Consenso de Washington [3] [4]. O receituário inclui redução do Estado, privatizações, desregulação do mercado, enfraquecimento dos direitos trabalhistas etc. Medidas que, em um longo prazo, em países periféricos como os da América Latina, aumentaram a desigualdade e a pobreza, a ponto de até mesmo economistas do FMI chamarem a atenção para a ineficiência do receituário neoliberal [5].

Assim como tantas outras coisas, as práticas neoliberais demoraram um pouco mais a chegar no Brasil, sendo implementadas no início dos anos 1990, com Fernando Collor de Mello, e aprofundadas nos governos FHC. Mesmo nos governos petistas de Lula e Dilma, não há uma ruptura abrupta com o neoliberalismo (Santos, 2020).


Fim do bloco socialista

Além do neoliberalismo, um outro fator geopolítico que coincide com a redemocratização da América Latina é o enfraquecimento do bloco socialista até a dissolução da União Soviética, em 1991. Não é coincidência que a doutrina neoliberal tenha avançado, nas décadas de 1980 e 1990, na medida em que o bloco socialista se enfraquece e deixa de existir. A queda do muro de Berlin, por exemplo, acontece no mesmo ano do Consenso de Washington, em 1989. Com a implosão da experiência dos estados socialistas no mundo, o capitalismo pôde recrudescer, tornar-se mais voraz contra os direitos trabalhistas e a classe trabalhadora, precarizando cada vez mais a mão de obra, com menos temor do risco do espírito do comunismo encarnar nas lutas dos trabalhadores.

O projeto político-econômico preconizado pelo Consenso de Washington no início dos anos 1990 foi o vencedor da disputa entre “estatismo versus capitalismo de mercado” (…). O retorno da democracia na América Latina a partir do fim da década de 1970 e a posterior adoção de reformas voltadas para o mercado trouxeram à região a promessa de desenvolvimento econômico e melhorias das condições de vida dos seus cidadãos.

No entanto, ao longo da década de 1990 e da primeira metade dos anos 2000 o que se viu em grande parte dos países da região foi justamente o oposto: piora dos indicadores sociais e o aumento da desigualdade, trazendo a reboque desencantamento com a democracia e com o neoliberalismo. Pesquisas como o Latinobarómetro identificaram o descontentamento dos cidadãos com as chamadas “promessas não cumpridas” (SOUZA, 2013, p. 238).

Por isso, aqui classificamos o fim do bloco socialista como um fator geopolítico contemporâneo do processo de redemocratização da América Latina que, indiretamente, contribuiu para a piora dos indicadores sociais dos latino-americanos, pois com a derrota dos estados socialistas o capital não viu mais a necessidade de barganhar com as classes populares como havia feito por longos anos do século 20. A “ameaça” socialista ajudava a refrear os excessos do capital. No Brasil, um exemplo dessa barganha é a Consolidação das Leis Trabalhistas no período getulista. Em reportagem publicada pelo Jornal do Brasil em 2 de maio de 1943, Vargas declara que para a elaboração da nova legislação trabalhista ele buscou o equilíbrio entre o capitalismo e o socialismo [6]. Era uma forma de conter a influência de socialistas e anarquistas nos movimentos operários. Mais do que isso, Getúlio Vargas disputou as lideranças sindicais contra esses grupos e para fazer essa disputa foi preciso, além da força e da coerção, fazer também algumas concessões. Em grande medida, a experiência mundial da social-democracia em diversas nações também se explica por essa dinâmica, em que o capital precisa de alguma forma negociar com a classe trabalhadora para afastar o socialismo de suas fileiras. Essa mesma dinâmica também explica em parte o chamado “estado de bem-estar social” [7], que vigorou em meados do século 20 e que o neoliberalismo se esmerou para erodir.


Desilusão e desconfiança

A América Latína recém-democrática dos anos 1980, 1990, 2000, encontra um outro cenário, diferente do getulismo e do meado do século 20, sem o socialismo no horizonte de expectativas e, justamente por isso, enfrentando um capitalismo muito mais predatório. Desse modo, para muitos latinoamericanos, a redemocratização se mistura à frustração, por conta de uma piora (ou mesmo estagnação) na qualidade de vida no período democrático. Esse sentimento, com o passar dos anos, se converte em desconfiança nas instituições democráticas.

Em dezessete países latino-americanos pesquisados pelo Latinobarómetro, a partir de meados dos anos 1990, apenas 1/5 do públco expressou “muita” ou “alguma” confiança em partidos políticos, e menos de 1/3 declarou confiar nos governos, parlamentos nacionais, nos funcionários públicos, na polícia e no judiciário. Estudos de casos individuais como o do México confirmam esses resultados. O panorama geral das novas democracias mostra, dessa forma, que nesse caso não está em questão uma crise de confiança política que, não logrou se enraizar em sua experiência recente, mas as dificuldades do novo regime para adensar a ligação orgânica entre os cidadãos e as estruturas de poder (…). Quando as instituições não contam com a confiança dos cidadãos, têm dificuldade para funcionar como mediação entre suas expectativas e os objetivos propostos por governos e por lideranças políticas (MOISÉS, 2005, p. 47-48).

Em países como o Brasil, com o passar dos anos essa desconfiança nas instituições democráticas se converte em um forte sentimento de saudosismo da ditadura. Esse sentimento passa a ser instrumentalizado politicamente e é o que, juntamente com outros fatores, como por exemplo o antipetismo, leva ao surgimento de uma nova extrema-direita que tem na figura de Jair Bolsonaro seu principal nome. Até então um político pouco relevante do chamado “baixo clero”, Bolsonaro é eleito presidente da República. Seu discurso antissistema (mesmo sendo ele próprio fisiológico desses sistema, com tantos mandatos parlamentares no currículo) e apologético ao autoritarismo conquistou as mentes de muitos que, descrentes das instituições democráticas, possivelmente tinham na frustração com a agenda neoliberal as raízes dessa descrença, ainda que nem sempre se perceba a coincidência entre os diferentes fatores geopolíticos aqui citados e a conjuntura que os une.

Portanto, para algumas pessoas que viveram os tempos da ditadura militar e que, a despeito do autoritarismo, encontraram naqueles tempos possibilidades como acesso a moradia, a educação e outros itens básicos, é possível que, em contraste com o atual estágio do capitalismo neoliberal predatório, afirmem e acreditem que “antigamente é que era bom”. O erro entretanto está na identificação do problema. E, quando se erra na identificação do problema, erra-se na propositura da solução. A democracia não é a culpada, mas sim a solução, pois é por meio dela que a sociedade pode lutar por representativdade nas instituições, para que as mesmas não continuem capturadas pelo capital e servindo de artífices do receituário neoliberal. Receituário contra o qual a escolha protofascista de Jair Bolsonaro não apresenta nenhuma solução concreta. Pelo contrário, o apologista da ditadura busca se alinhar ao neoliberalismo almejando uma governabilidade garantida pelos detentores de capital e de poder.


Referências:

MOISÉS, José Álvaro. A desconfiança nas instituições democráticas. Revista Opinião Pública, Campinas, v. XI, n. 1, março, 2005, p. 33-63. Disponível em <https://www.scielo.br/j/op/a/xymhYmLZdKYkpmDbwqzj44S/?format=pdf&lang=pt >


SANTOS, Adriano Pereira. O Brasil é socialista? In: Revisionismos: a universidade esclarece. São Paulo, Mentes Abertas, 2020.


SOUZA, André Luiz Coelho. O papel da sociedade e das instituições na definição das crises políticas e quedas de presidentes na América Latina. Monções, Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v 2, n. 3, jan/junm 2013. Disponível em: < https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/2694/1539>


[1] https://www.politize.com.br/neoliberalismo-o-que-e/


[2] https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2019/03/23/bolsonaro-no-chile-como-a-escola-de-chicago-transformou-pais-latino-americano-em-laboratorio-do-neoliberalismo.htm


[3] https://brasilescola.uol.com.br/geografia/consenso-washington.htm


[4] https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/consenso-washington.htm


[5] https://www.politize.com.br/neoliberalismo-o-que-e/


[6] https://agencia.fiocruz.br/consolida%C3%A7%C3%A3o-das-leis-trabalhistas-criada-por-vargas-completa-70-anos


[7] https://www.politize.com.br/estado-de-bem-estar-social-e-estado-liberal-diferenca/





terça-feira, 18 de janeiro de 2022

“Não olhe para cima” (ou "não olhe para o clima"): que provas são necessárias para tirar as pessoas da inércia e da negação?

Muita coisa já foi dita sobre “Não olhe para cima”, do diretor Adam McKay, lançado pela Netflix há algumas semanas. O filme conta a história de cientistas que descobrem um cometa que está em rota de colisão com a Terra. O impacto irá ocorrer dentro de pouco mais de seis meses e extinguir a humanidade. O longa-metragem soa original ao explorar um estilo “comédia catástrofe” que pouco se assiste por aí. Mas o que faz da produção um grande sucesso – o terceiro filme original mais assistido da Netflix até agora [1] –, é o modo como ela satiriza questões bastante atuais que têm marcado os últimos anos, no mundo e também no Brasil. 

O filme é uma metáfora da questão climática [2], possivelmente o maior desafio científico-político atual da sociedade global (apesar da excepcionalidade da pandemia de coronavírus). Leonardo DiCaprio, que interpreta o professor Randall Mindy, é também um ativista ambiental que frequentemente chama a atenção para a crise climática. A colisão com o cometa Dibiasky – que recebe esse nome em homenagem à pesquisadora Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), que é quem de fato descobre o corpo celeste – é portanto uma metáfora do colapso que as mudanças climáticas podem causar, com efeitos que já podem ser sentidos. Esse cometa-metáfora é, digamos, um pouco mais visualizável que o aquecimento global em si. E esse é o ponto que queremos abordar.

Misturados à trama há diversos elementos que representam a atualidade do contexto das relações entre ciência, política e mídia, o que faz com que “Não olhe para cima” traduza não só os problemas no âmbito da crise climática, mas também o cenário pandêmico e o campo científico de modo geral. O filme retrata satiricamente o negacionismo; a superficialidade do jornalismo, das redes sociais e da sociedade do espetáculo; a influência do capital privado na condução de assustos científicos por parte dos governos; as desigualdades no tratamento dispensado a homens brancos, homens negros e mulheres; o poder das big techs na captura e manipulação de nossos dados; a perda de autoridade dos processos e métodos científicos (como a revisão por pares) diante do peso dos algorítmos e do funcionamento do mundo digital. Por tudo isso, o filme é tão cativante e leva o espectador a fazer comparações entre passagens do roteiro e acontecimentos da vida real. 


O que Carl Sagan faria?

Logo no primeiro minuto do filme, o segundo plano detalhe nos mostra um bonequinho do astrônomo Carl Sagan, possivelmente o maior divulgador científico do século 20, autor de diiversos livros, idealizador e apresentador da primeira versão da popular série de TV Cosmos, em 1980 (meu objeto de pesquisa de mestrado – CAMPOS, 2019). “O que Carl Sagan faria?”, pergunta a sua equipe o professor Mindy, tentando absorver os primeiros dados sobre o cometa recém-descoberto, ainda sem noção da gravidade da situação. Não é nossa pretensão dizer o que Sagan faria nos estudos astronômicos, mas podemos refletir sobre como ele fez divulgação científica. 

Sagan fazia o que podia para, por meio de metáforas visuais, converter em imagens conceitos científicos difíceis de visualizar. É o que podemos ver em Cosmos, quando ele se vale de uma maçã e uma maquete simplória, feita com retalhos de papel, cartolina ou papelão, para explicar como seria a quarta dimensão [3]; ou quando o vemos subindo uma escada semelhante ao formato de uma representação do DNA, no Royal Botanic Garden (RU), pala falar sobre o funcionamento das plantas [4]; ou também quando ele assopra com um canudo uma bacia com água e sabão, formando bolhas, para mostrar mais ou menos como seria a forma das galáxias [5]. A engenhosidade de Sagan tentava driblar a precariedade dos recursos disponíveis naqueles tempos para estabelecer uma ponte entre nossa capacidade de cognição e a abstração de alguns modelos e conceitos científicos.


Metáfora e divulgação científica

As figuras de linguagem são uma ferramenta importante para, ao mesmo tempo, simplificar o conhecimento e aproximá-lo do senso comum. É o caso das metáforas. Há metáfora quando, por exemplo, as pontes de Einstein-Rosen são chamadas de “buracos de minhoca”. Essas pontes, de acordo com o estudo publicado em 1935 por Albert Einstein e Nathan Rosen, são parecidas com um túnel com duas extremidades separadas no espaço tempo ligando regiões espaciais distintas. O conceito às vezes é explorado em obras de ficção científica para justificar viagens no tempo, como no filme Interestelar (2014). “Buraco de minhoca” é uma forma de criar um tipo de visualização na cabeça do destinatário da informação em relação a algo que não pode ser visto. “Na metáfora, a associação se processa entre termos de dois campos semânticos distintos, advindo a assimilação entre os termos. Quanto maior a assimilação, melhor efeito causará” (RIBEIRO, 2012, p 368). 

"A existência de similitudes no mundo objetivo, a incapacidade de abstração absoluta, a pobreza relativa do vocabulário disponível, em contraste com a riqueza e a numerosidade das ideias a transmitir, e, ainda, o prazer estético da caracterização pitoresca, constituem as motivações da metáfora" (GARCIA apud RIBEIRO, 2012, p 368).

A divulgação científica funciona como um elo entre o público em geral e a produção de ciência. A metáfora é um de seus principais recursos. Para Dorothy Nelkin, um dos maiores propósitos da divulgação científica é “facilitar para as pessoas o acesso a um conhecimento especializado, já que, com frequência, se enfrentam decisões e eleições – tanto de repercussão pública como privada – que requerem certa compreensão científica” (apud LEÓN, 2010, p 29-30). Uma vez que ninguém pode ter conhecimento especializado sobre todas as coisas (nem mesmo os próprios cientistas), a divulgação científica surge para traduzir conhecimentos complexos, produzidos por aqueles que estão imersos em determinados segmentos de pesquisa, para outras pessoas que, direta ou indiretamente, são afetadas pela produção desses conhecimentos específicos. É, portanto, um modo discursivo que serve de plataforma para que as partes se entendam. 


Metáforas para visualizarem a crise climática

Já a segunda versão de Cosmos, apresentada por Neil deGrasse Tyson (que chegou a ser aluno da Carl Sagan), em 2014, dispôs de muito mais recursos visuais do que a versão original, devido aos avanços tecnológicos e às possibilidades da computação gráfica. Ainda assim, a engenhosidade em usar elementos simples para criar pequenas metáforas visuais, fazendo conceitos complexos ou abstratos parecerem mais paupáveis e visualizáveis, é perceptível e encantadora. Por exemplo, quando Tyson, para explicar a diferença entre “tempo” e “clima”, usa seu passeio com um cachorro em uma praia [6]. A sequência é tão boa que foi copiada por Felipe Castanhari na série de divulgação científica “Mundo Mistério”, da Netflix (e isso não é nenhum demérito, pois o que é bom merece ser copiado!). 

No mesmo episódio, que, assim como “Não olhe para cima”, aborda os riscos das mudanças climáticas, Tyson resume literalmente aquilo que Cosmos, enquanto um documentário científico, tenta fazer: traduzir o problema do aquecimento do planeta em imagem. “É uma pena que o CO2 seja invisível. Talvez se pudéssemos vê-lo. Se nossos olhos fossem sensíveis ao CO2...”. A fala do apresentador é o gancho para uma curta sequência em que o dióxido de carbono é representado por uma fumaça roxa, bastante visível, saindo de carros e aviões e tomando o horizonte de uma grande cidade [6]. “Se pudéssemos ver todo esse dióxido de carbono, deixaríamos a negação de lado e entenderíamos a magnitude de nosso impacto na atmosfera”, reforça Tyson.

São Tomé dizia que era preciso ver para crer. Tyson parte desse princípio ao discutir o negacionismo climático em 2014 e acredita que, quanto mais visualizável for o problema, maior a capacidade de convencimento a respeito da gravidade desse problema. “Não olhe para cima” parece partir da mesma ideia, só que de uma forma mais artística, porém mais cética, ou, ainda, mais desesperada. O filme trata da questão climática de forma alegórica, usando um cometa na direção da Terra como a alegoria. Essa é a metáfora visual. 

A relação entre o filme e a divulgação científica e seus atuais desafios é evidente, mas “Não olhe para cima” não é divulgação científica e sim cinema, arte. Portanto a metáfora pode ser muito mais elástica, com maior riqueza estética. E assim ela é. Se Cosmos transforma o CO2 em uma fumaça roxa, o filme de Adam McKay transforma as mudanças climáticas em um cometa gigante que está rasgando o céu, a cada dia mais visivel, vindo em nossa direção e prestes a arrebentar com tudo bem na nossa cara. Arrebentar comigo e com você! O que pode ser mais radicalmente visivel que isso?


Por mais que a gente mostre, o negacionismo parece maior

O problema é que o filme, mais do que Tyson na série Cosmos de 2014, parece entender que o negacionismo é um problema muito maior do que se imaginava. E nisso consiste o seu grande ceticismo (e pessimismo). Roteirizado às vésperas da pandemia, as dimensões do negacionismo ficaram ainda mais evidentes no contexto pandêmico, fazendo com que, por mais que a obra mire nas mudanças climáticas, ela possa ser muito bem interpretada usando o problema da covid-19 como parâmetro, incluindo a negação das máscaras, das vacinas, do isolamento social etc.  

Sendo assim, ainda que o filme use a alegoria do cometa como metáfora visual para tratar da questão climática, ele traz implícita a ideia (desesperadora) de que por mais visivel e tangível que uma prova seja, nem esfregando na cara de um negacionista ela é capaz de convencê-lo. Embora, no final do filme (atenção, spoilers!), muitos percebam que foram enganados, quando já é tarde demais.

Em um momento da trama em que se discutia quais as melhores estratégias para lidar com o cometa e se sua vinda era boa ou ruim (isso porque políticos, empresários e propagandistas [7] conseguiram convencer parte da população de que um cometa em rota de colisão com o planeta poderia ser uma coisa boa), havia muita gente que sequer acreditava na existência do tal cometa. Em um telejornal, quando perguntado pelos apresentadores se o cometa realmente existe, o professor Mindy perde a paciência: “Nós sabemos que o cometa existe porque temos dados. Nós o vimos com nossos próprios olhos, usando um telescópio, e ainda tiramos uma porcaria de uma foto dele. Que outra prova precisamos?”

Talvez essa seja a principal pergunta deixada pelo filme. Ou, perguntando de outras formas: quais seriam as provas necessárias para fazerem as pessoas saírem do estado de negação ou de inércia? O que é preciso ser esfregado na sua cara para te fazer mudar de opinião?


Internet, redes sociais e a perda das bases em comum

O professor Mindy segue na entrevista pragejando contra o contexto comuncacional e a nossa dificuldade de diálogo, em que cada vez mais bases que até então eram compartilhadas vão sendo erodidas: “Se nós não conseguimos concordar minimamente que um cometa do tamanho do Everest está vindo em direção à Terra, então estamos ferrados! Como ainda conseguimos nos comunicar? O que nós nos tornamos? Como vamos consertar isso?”

Para que possamos avançar nos diálogos e na produção de conhecimento, precisamos de bases em comum. Por exemplo, não dá para discutir sobre o funcionamento do GPS ou das circum-navegações (e olha que elas são bem antigas!) sem partir do entendimento de que a Terra é redonda. O problema é que cada vez mais os consensos vão ficando raros e as pessoas vão se isolando em bolhas de opinião que, de tão dispersas e distantes umas das outras, parecem transformar-se em verdadeiros buracos negros de cognição. E o diálogo fica impossível. É muito difícil avançarmos sem partirmos de alguns consensos já estabelecidos. 

Ao abordarmos essa nossa dificuldade em nos comunicar, não há como não refletirmos sobre os modos como as redes sociais favoreceram a criação de inúmeras bolhas ideológicas, que funcionam como verdadeiros universos paralelos que coabitam nas sociedades. “Não olhe para cima” não deixa  essa crítica escapar e também dispara sobre como o funcionamento dos algorítmos das redes sociais possibilita a disseminação de teorias conspiratórias das mais absurdas, que contribuem para o não entendimento de consensos científicos. E as mudanças climáticas antropogênicas (causadas pela ação do homem) são um consenso científico [8]. 

Para o historiador da ciência David Wootton, de forma irônica e contraditória, as novas tecnologias comunicacionais nos fizeram retornar à Idade Média em certo aspecto, pois as pessoas se dividiram em tribos, que reunem somente aqueles que possuem opiniões semelhantes. “É um processo no qual reforçam seus próprios preconceitos e suposições. E acham que quem discorda é irracional e mal intencionado. E o contato que acontecia entre pessoas de pontos de vista diferentes está acabando”. (WOOTTON, 2017). Ele prossegue:    

"A internet cria uma enchente de pontos de vista diferentes e você não consegue diferenciar o certo do errado, pois todos parecem igualmente convincentes na tela. (...) A fofoca está sendo transformada em opinião, e fica bem mais difícil distinguir argumentos bem fundados de preconceito. Acho que a internet está nos levando de volta a um mundo medieval no qual as histórias se espalham rapidamente, sejam verdadeiras ou falsas, e fica impossível descobrir de onde vieram e se são confiáveis" (WOOTTON, 2017).

Deixar de usar a internet e as redes sociais com certeza não é a solução. Mas ficam as perguntas do professor Mindy: Que provas precisamos apresentar? Como ainda conseguimos nos comunicar? O que nós nos tornamos? Como vamos consertar isso? “Não olhe para cima” não traz as respostas, mas ao menos faz as perguntas pertinentes de uma forma perspicaz e divertida, embora desperte um sorriso amarelado num tom de desespero. 


Referências:

CAMPOS, Alexandre Freitas. Cotidiano, imaginário e o discurso da ciência na série de TV Cosmos. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2019.

LEÓN, Benvenido (org). Ciencia para la televisión: el documental científico y sus claves. Barcelona: UOC, 2010.

RIBEIRO, Manoel P. Nova gramática aplicada da Língua Portuguesa: a construção de sentido de acordo com a nova gramática. Rio de Janeiro: Metáfora Editora, 2012, 21ª ed.

WOOTTON, David. Ideias do milênio: “A internet está nos levando de volta a um mundo medieval”. Consultor Jurídico. 10 jun 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jul-10/milenio-david-wootton-autor-breve-historia-fatos> Acesso em 14 jan 2022.


[1] https://olhardigital.com.br/2022/01/06/cinema-e-streaming/nao-olhe-para-cima-se-torna-o-filme-da-netflix-mais-visto-em-uma-unica-semana/

[2] https://www.legiaodosherois.com.br/2021/nao-olhe-para-cima-adam-mckay-tematicas.html

[3] https://www.youtube.com/watch?v=WMZNLy0hGEI

[4] https://www.youtube.com/watch?v=vUZJk7xkGWg

[5] https://www.youtube.com/watch?v=8tjr1uEFvNc

[6] https://pt-br.facebook.com/COSMOSNatGeoBrasil/videos/o-novo-mundo-livre-cosmos-s01e12-2014/592672854409958/ ou https://vimeo.com/153447904

[7] https://universoracionalista.org/alan-sokal-o-pior-inimigo-da-ciencia-nao-e-deus-sao-os-politicos-e-a-propaganda/

[8] https://socientifica.com.br/revisao-descobriu-falhas-em-todos-os-3-dos-artigos-cientificos-que-negam-as-mudancas-climaticas/



1 ano sem Maurício Tuffani: um gigante da divulgação científica, para além das redes sociais

No último dia 31 de maio de 2022, um ano se completou da morte do jornalista e divulgador científico Maurício Tuffani. Lembro-me bem da dat...